*
Indication of biography about this matter for personal deepening:
. AZEVEDO, Maíra.
Personagens destacam-se no “tapete
branco”. A Tarde, Salvador, p.
a7, 13 de jan. 2012.
. BARROS Marcelo. Jesus of Nazareth, Spirit of Compassion: Elements of a
afro-brazilian christology in VIGIL, J. M. (Org.). Getting the poor down from the cross: Christology of
Liberation. Digital book,
disponível em http://www.servicioskoinonia.org/LibrosDigitales/index.php, pp. 21-28. Acesso em 03 de maio de 2017.
. BOFF, L. Avaliação teológico-crítica do sincretismo. Vozes, n. 71, pp. 53-68.
.
MIRANDA, Mário de França. Inculturaçao da fé e sincretismo religioso. Rio
de Janeiro. Disponível em: http://www.itf.org.br/revistas/reb/238_1.php. Acesso em 19 de nov. 2012.
. RUSSELL, James C. The Germanization of Early Medieval Christianity: A Sociohistorical
Approach to Religious
Transformation, Nova York, Oxford University Press, 1994.
.
WILSON, Richard. Maya resurgence of Guatemala: Q’eqchi’ Experiences. Norman Oklahoma University
Press, 1995.
. ZERO HORA. Rito mais que católico: navegantes mais
plural. Zero hora, Porto Alegre, p. 31, 02 de fev. 2012.
.
SCHREITER, Robert J. A nova catolicidade:
a teologia entre o global e o local. São Paulo: Loyola, 1998.
Eu gostaria de iniciar este
artigo a partir de algumas situações concretas que nos levam a uma profunda
reflexão. Causou-me forte impressão o testemunho de uma fiel, baiana de
acarajé, de nome Edna Santana, noticiado pelo jornal A TARDE. O fato ocorreu
durante a tradicional “Lavagem do Bonfim”, que acontece em Salvador[1] e que reúne adeptos do
catolicismo e candomblé, especialmente. Esta senhora assim se expressou: “Sou
baiana de verdade, filha do terreiro Ilê
Axé Oya Larô, vim agradecer ao Senhor do Bonfim e também a Oxalá pela saúde
de minha mãe”. Dizia ainda o jornal que mesmo sendo uma festa do calendário
católico e com uma forte presença dos adeptos do candomblé, outras religiões
também se integram ao tapete branco em homenagem ao Senhor do Bonfim[2].
Para quem olha de fora, fica a perguntar-se: como ela consegue juntar, com
tanta facilidade, duas formas de crer tão diferentes? A final, ela é
candomblecista ou católica?
Em diversos pontos do Brasil,
notamos comportamentos semelhantes. Há, por exemplo, em Porto Alegre, a procissão
de Nossa Senhora dos Navegantes que, embora seja de rito católico, sempre
contou com a participação, mesmo velada, dos adeptos das religiões
afro-brasileiras, que associam a santa à Orixá Iemanjá. No ano de 2012, os
adeptos destas religiões foram convidados para uma caminhada pela paz[3].
A situação é semelhante à anterior, mas traz um elemento novo que é muito
importante para o nosso estudo: caminhada pela paz. Trata-se da possibilidade
de pessoas de diferentes credos estarem juntas, caminharem juntas, somando
esforços, em vista de uma causa social.
É ilustrativa também a
experiência feita pelo teólogo Marcelo Barros entre os Kamba, uma tribo do Quênia.
Ele teve a oportunidade de se encontrar com uma sacerdotisa da religião
tradicional e perguntou a ela se era possível relacionar Jesus e a entidade que
eles invocam com o nome de Kanambe. Assim ela respondeu:
Não há nenhuma dificuldade de relacionar Jesus
e Kanambe. Jesus Cristo nos revela Deus presente na história, nos fatos da vida
e nas pessoas, e nos ajuda a descobrir que Kanambe é a manifestação de Deus
presente na natureza, na terra e na água. As duas ordens não entram em conflito, na verdade, se compenetram. Jesus é uma espécie de plenitude
da fé em Kanambe, porém não é algo que a esvazia ou a substitui com uma espécie
de “cultura crista ocidentalizada; ao contrário, a valoriza e lhe dá densidade
histórica[4].
Estamos diante de um dos
maiores desafios contemporâneos, do ponto de vista da vivência da
religiosidade. Há pessoas que assumiram identidade religiosa sincrética como
característica e para elas não existe problema em relacionar um santo com outra
entidade, pois seus antepassados fizeram e aquilo que lhe foi ensinado, deve
ser seguido em vista de viverem com harmonia e satisfação o seu sentimento
religioso, o seu sentido de pertença.
As lideranças eclesiásticas
julgam tratar-se de uma verdadeira confusão e que a fé deve ser pura, assim
como a religião é pura. Daí surgem os seguintes questionamentos: Por acaso,
existe religião pura? Existe cristianismo puro? Existe catolicismo puro? Essas
pessoas têm consciência de que sua prática religiosa sincrética é também
católica. Estariam elas equivocadas? Será que o que chamamos sincretismo não se
trata de uma síntese entre o que as pessoas possuíam e o que receberam?
Buscaremos responder a estas questões, mas sempre como aproximações, por se
tratar de um processo complexo, resultado de interações culturais e
transformações simbólicas sempre presente na história das civilizações.
As inúmeras e diversificadas expressões religiosas,
presentes entre nós são resultado de um rico intercâmbio cultural, que continua
a acontecer, fazendo surgir novas identidades religiosas. A este processo
chamamos sincretismo. Genericamente,
esta expressão é usada para “descrever a formação de uma identidade religiosa”[5],
caracterizada pelo encontro, intercâmbio e assimilação intercultural e
inter-religiosa. Tal experiência ocorreu com muita intensidade no período da
colonização, mas suas raízes vêm de muito longe.
O termo “sincretismo” tem sua origem em Plutarco (46DC –
120DC) e caracterizava a junção das cidades cretenses, geralmente inimigas,
diante de ameaças externas. Desde o renascimento (fim do século XIV – fim do
século XV) esta palavra tem sido usada para designar compilações sintéticas de
cunho cultural. Na época do confessionalismo se tornou um conceito
antiecumênico. Já no século XIX, as ciências da religião passam a utilizá-lo
como um instrumento muito importante de seu estudo, principalmente, com
finalidade descritiva ou polêmica, no estudo histórico do cristianismo, já que
este, em seu desenvolvimento, absorveu elementos culturais e religiosos de seu
contexto. Neste sentido muitos consideram o catolicismo como um dos maiores
exemplos de uma religião sincretista[6].
Vamos então tentar entender como se dá esse processo.
O autor R. J. Schreiter observa que, desde os primórdios do
cristianismo já houve experiência sincrética, levando em conta os elementos
judaicos, gregos, romanos, a divergência das formas históricas nas liturgias
(Oriente e Ocidente) e regras morais, apesar de terem Escrituras e profissão de
fé comuns (em grande parte)[7].
O fator decisivo aqui é a assimilação cultural em cada local. O autor James C.
Russell, citado por Schreiter, em sua obra sobre a germanização do cristianismo
medieval, relaciona o sincretismo com interação cultural e formação da
identidade religiosa[8].
A hipótese que ele levanta é que
a
visão de mundo das religiões indo-europeia, grega, romana e germânica era
essencialmente centrada no povo e, portanto, ‘concordante com o mundo’, ao
passo que a visão de mundo das religiões de mistérios orientais e do
cristianismo primitivo era essencialmente soteriológica e escatológica e, daí,
‘discordante do mundo’[9].
Ainda de acordo com esta visão, considera-se que o
cristianismo se difundindo no mediterrâneo, não teve que acomodar a sua visão
de mundo ao sistema que concordava com o mundo – neste caso, o Império Romano -
tornando-se assim uma proposta atraente para todos os considerados “fora do
mundo”, porque eram excluídos do sistema por não possuírem participação plena:
não-cidadãos, mulheres ricas, escravos libertos e imigrantes de fora do
Império. O cristianismo prometia o que a sociedade lhes negava: participação
plena, que incluía salvação no outro mundo. Portanto, aqui o cristianismo não precisou
mudar significativamente seus códigos. Mas quando ele se move para o norte
germânico da Europa, adota uma política de acomodação a esta sociedade,
deixando-se transformar por ela[10].
Segundo R. J. Schreiter, este cristianismo transformado, a partir do século X, volta
à Itália, tornando-se padrão cultural em Roma. Algumas práticas desta sociedade
vão sendo introduzidas nos rituais cristãos, dando importância a certos
elementos e símbolos que antes não faziam parte do rol devocional[11].
Assim sendo, “um padrão bastante reconhecível de religião popular estava se
tornando parte do cristianismo europeu”[12].
Sem dúvida alguma, houve uma sensível e inevitável assimilação de valores
culturais e religiosos destas regiões com as quais o cristianismo foi mantendo
contato, sem oferecer muita resistência, fazendo nascer, desta longa
experiência, uma “nova identidade” de cristianismo.
Tomando
apenas esse único exemplo, de uma forma de cristianismo que dominou o Ocidente
até a Reforma e que sobrevive na religião popular exportada da península
Ibérica para a América Latina no século XV, percebe-se, de um ponto de vista
semiótico, o que acontece quando a mensagem do cristianismo é transmitida por
meio de um código cultural diferente – nesse caso, um código de concordância com
o mundo (...) O cristianismo que emerge parece desviado de sua linhagem
mediterrânea[13].
Como se vê, a essência da questão do sincretismo – no caso
cristão - é a transmissão da mensagem cristã por meio de diferentes elementos
culturais. Portanto, é com este cristianismo sincretista que as tradições
culturais e religiosas indígenas e afrodescendentes da América Latina e,
especialmente do Brasil, entrarão em contato. A conclusão a que se chega é que,
conforme L. Boff, “o cristianismo puro não existe, nunca existiu, nem pode
existir”[14].
Segundo este teólogo, o próprio conceito de catolicidade autoriza um julgamento
positivo do sincretismo, pois implica a inserção da Igreja em todas as
sociedades[15].
Veremos nos futuros artigos que o cristianismo ao entrar em contato com as
culturas, proporá a inculturação como um projeto missionário e em muitas dessas
experiências a resposta tem sido o sincretismo como síntese desta interação
cultural e transformação simbólica.
Author: Josuel Degaaxé dos
Santos Boaventura PSDP - Fr Ndega
Theological review: Dr. Fr
Luis Carlos Susin
[2] Cf. AZEVEDO, M. Op. Cit. p. a7.
[3] Cf. ZERO HORA. Op. Cit. p. 31.
[5] SCHREITER,
R. J. Op. cit., p. 71. “(...) a identidade não deve ser vista como um conceito
aristotélico fechado, mas como uma variedade de paradoxos que interagem
dinamicamente, sem jamais serem conciliados” (WILSON, Richard. Op. cit., p. 83).
[7] Cf. SCHREITER, R. J. Op. cit.,
p. 73. Inclusive
ele chega a afirmar que “para compreendermos o sincretismo contemporâneo,
portanto, mesmo uma breve olhada para o passado nos fará ver que a interação
cultural e a transformação simbólica sempre ocorreram” (Ibid., p. 76).
[8] Cf. RUSSELL, J. C. Op. cit., p.
73.
[9] Ibid., p. 73.
[11] Cf. Id. Ibid., p. 74. Na mesma
página, o autor continua: “Uma crescente distância entre o altar e o povo,
surge o ciclo do Natal (...), mais atenção foi dada a objetos (a cruz,
relíquias), a Maria e aos santos; missas votivas particulares foram
introduzidas; a reza de mãos entrelaçadas, a postura de um vassalo diante do
senhor, substituiu a postura orans tradicional”.
[15] Cf. Ibid., p 54.
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