THE BLACK PEOPLE CULTURES

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Friday, May 12, 2017

INTERAÇÕES CULTURAIS E TRANSFORMAÇÃO SIMBÓLICA NA FORMAÇÃO DAS IDENTIDADES RELIGIOSAS


* Indication of biography about this matter for personal deepening:
. AZEVEDO, Maíra. Personagens destacam-se no “tapete branco”. A Tarde, Salvador, p. a7, 13 de jan. 2012.
. BARROS Marcelo. Jesus of Nazareth, Spirit of Compassion: Elements of a afro-brazilian christology in VIGIL, J. M. (Org.). Getting the poor down from the cross: Christology of Liberation.  Digital book, disponível em http://www.servicioskoinonia.org/LibrosDigitales/index.php, pp. 21-28.    Acesso em 03 de maio de 2017.
. BOFF, L. Avaliação teológico-crítica do sincretismo. Vozes, n. 71, pp. 53-68.
. MIRANDA, Mário de França. Inculturaçao da fé e sincretismo religioso. Rio de Janeiro. Disponível          em: http://www.itf.org.br/revistas/reb/238_1.php. Acesso em 19 de nov. 2012.
. RUSSELL, James C. The Germanization of Early Medieval Christianity: A Sociohistorical Approach to       Religious Transformation, Nova York, Oxford University Press, 1994.
. WILSON, Richard. Maya resurgence of Guatemala: Q’eqchi’ Experiences. Norman Oklahoma University Press, 1995.
. ZERO HORA. Rito mais que católico: navegantes mais plural. Zero hora, Porto Alegre, p. 31, 02 de fev. 2012.
. SCHREITER, Robert J. A nova catolicidade: a teologia entre o global e o local. São Paulo: Loyola, 1998.

Eu gostaria de iniciar este artigo a partir de algumas situações concretas que nos levam a uma profunda reflexão. Causou-me forte impressão o testemunho de uma fiel, baiana de acarajé, de nome Edna Santana, noticiado pelo jornal A TARDE. O fato ocorreu durante a tradicional “Lavagem do Bonfim”, que acontece em Salvador[1] e que reúne adeptos do catolicismo e candomblé, especialmente. Esta senhora assim se expressou: “Sou baiana de verdade, filha do terreiro Ilê Axé Oya Larô, vim agradecer ao Senhor do Bonfim e também a Oxalá pela saúde de minha mãe”. Dizia ainda o jornal que mesmo sendo uma festa do calendário católico e com uma forte presença dos adeptos do candomblé, outras religiões também se integram ao tapete branco em homenagem ao Senhor do Bonfim[2]. Para quem olha de fora, fica a perguntar-se: como ela consegue juntar, com tanta facilidade, duas formas de crer tão diferentes? A final, ela é candomblecista ou católica?

Em diversos pontos do Brasil, notamos comportamentos semelhantes. Há, por exemplo, em Porto Alegre, a procissão de Nossa Senhora dos Navegantes que, embora seja de rito católico, sempre contou com a participação, mesmo velada, dos adeptos das religiões afro-brasileiras, que associam a santa à Orixá Iemanjá. No ano de 2012, os adeptos destas religiões foram convidados para uma caminhada pela paz[3]. A situação é semelhante à anterior, mas traz um elemento novo que é muito importante para o nosso estudo: caminhada pela paz. Trata-se da possibilidade de pessoas de diferentes credos estarem juntas, caminharem juntas, somando esforços, em vista de uma causa social.

É ilustrativa também a experiência feita pelo teólogo Marcelo Barros entre os Kamba, uma tribo do Quênia. Ele teve a oportunidade de se encontrar com uma sacerdotisa da religião tradicional e perguntou a ela se era possível relacionar Jesus e a entidade que eles invocam com o nome de Kanambe. Assim ela respondeu:

Não há nenhuma dificuldade de relacionar Jesus e Kanambe. Jesus Cristo nos revela Deus presente na história, nos fatos da vida e nas pessoas, e nos ajuda a descobrir que Kanambe é a manifestação de Deus presente na natureza, na terra e na água. As duas ordens não entram em conflito, na verdade, se compenetram. Jesus é uma espécie de plenitude da fé em Kanambe, porém não é algo que a esvazia ou a substitui com uma espécie de “cultura crista ocidentalizada; ao contrário, a valoriza e lhe dá densidade histórica[4].

Estamos diante de um dos maiores desafios contemporâneos, do ponto de vista da vivência da religiosidade. Há pessoas que assumiram identidade religiosa sincrética como característica e para elas não existe problema em relacionar um santo com outra entidade, pois seus antepassados fizeram e aquilo que lhe foi ensinado, deve ser seguido em vista de viverem com harmonia e satisfação o seu sentimento religioso, o seu sentido de pertença.

As lideranças eclesiásticas julgam tratar-se de uma verdadeira confusão e que a fé deve ser pura, assim como a religião é pura. Daí surgem os seguintes questionamentos: Por acaso, existe religião pura? Existe cristianismo puro? Existe catolicismo puro? Essas pessoas têm consciência de que sua prática religiosa sincrética é também católica. Estariam elas equivocadas? Será que o que chamamos sincretismo não se trata de uma síntese entre o que as pessoas possuíam e o que receberam? Buscaremos responder a estas questões, mas sempre como aproximações, por se tratar de um processo complexo, resultado de interações culturais e transformações simbólicas sempre presente na história das civilizações.  

         As inúmeras e diversificadas expressões religiosas, presentes entre nós são resultado de um rico intercâmbio cultural, que continua a acontecer, fazendo surgir novas identidades religiosas. A este processo chamamos sincretismo. Genericamente, esta expressão é usada para “descrever a formação de uma identidade religiosa”[5], caracterizada pelo encontro, intercâmbio e assimilação intercultural e inter-religiosa. Tal experiência ocorreu com muita intensidade no período da colonização, mas suas raízes vêm de muito longe.

         O termo “sincretismo” tem sua origem em Plutarco (46DC – 120DC) e caracterizava a junção das cidades cretenses, geralmente inimigas, diante de ameaças externas. Desde o renascimento (fim do século XIV – fim do século XV) esta palavra tem sido usada para designar compilações sintéticas de cunho cultural. Na época do confessionalismo se tornou um conceito antiecumênico. Já no século XIX, as ciências da religião passam a utilizá-lo como um instrumento muito importante de seu estudo, principalmente, com finalidade descritiva ou polêmica, no estudo histórico do cristianismo, já que este, em seu desenvolvimento, absorveu elementos culturais e religiosos de seu contexto. Neste sentido muitos consideram o catolicismo como um dos maiores exemplos de uma religião sincretista[6]. Vamos então tentar entender como se dá esse processo.

          O autor R. J. Schreiter observa que, desde os primórdios do cristianismo já houve experiência sincrética, levando em conta os elementos judaicos, gregos, romanos, a divergência das formas históricas nas liturgias (Oriente e Ocidente) e regras morais, apesar de terem Escrituras e profissão de fé comuns (em grande parte)[7]. O fator decisivo aqui é a assimilação cultural em cada local. O autor James C. Russell, citado por Schreiter, em sua obra sobre a germanização do cristianismo medieval, relaciona o sincretismo com interação cultural e formação da identidade religiosa[8]. A hipótese que ele levanta é que

a visão de mundo das religiões indo-europeia, grega, romana e germânica era essencialmente centrada no povo e, portanto, ‘concordante com o mundo’, ao passo que a visão de mundo das religiões de mistérios orientais e do cristianismo primitivo era essencialmente soteriológica e escatológica e, daí, ‘discordante do mundo’[9].

         Ainda de acordo com esta visão, considera-se que o cristianismo se difundindo no mediterrâneo, não teve que acomodar a sua visão de mundo ao sistema que concordava com o mundo – neste caso, o Império Romano - tornando-se assim uma proposta atraente para todos os considerados “fora do mundo”, porque eram excluídos do sistema por não possuírem participação plena: não-cidadãos, mulheres ricas, escravos libertos e imigrantes de fora do Império. O cristianismo prometia o que a sociedade lhes negava: participação plena, que incluía salvação no outro mundo. Portanto, aqui o cristianismo não precisou mudar significativamente seus códigos. Mas quando ele se move para o norte germânico da Europa, adota uma política de acomodação a esta sociedade, deixando-se transformar por ela[10].

           Segundo R. J. Schreiter, este cristianismo transformado, a partir do século X, volta à Itália, tornando-se padrão cultural em Roma. Algumas práticas desta sociedade vão sendo introduzidas nos rituais cristãos, dando importância a certos elementos e símbolos que antes não faziam parte do rol devocional[11]. Assim sendo, “um padrão bastante reconhecível de religião popular estava se tornando parte do cristianismo europeu”[12]. Sem dúvida alguma, houve uma sensível e inevitável assimilação de valores culturais e religiosos destas regiões com as quais o cristianismo foi mantendo contato, sem oferecer muita resistência, fazendo nascer, desta longa experiência, uma “nova identidade” de cristianismo.

Tomando apenas esse único exemplo, de uma forma de cristianismo que dominou o Ocidente até a Reforma e que sobrevive na religião popular exportada da península Ibérica para a América Latina no século XV, percebe-se, de um ponto de vista semiótico, o que acontece quando a mensagem do cristianismo é transmitida por meio de um código cultural diferente – nesse caso, um código de concordância com o mundo (...) O cristianismo que emerge parece desviado de sua linhagem mediterrânea[13].


        Como se vê, a essência da questão do sincretismo – no caso cristão - é a transmissão da mensagem cristã por meio de diferentes elementos culturais. Portanto, é com este cristianismo sincretista que as tradições culturais e religiosas indígenas e afrodescendentes da América Latina e, especialmente do Brasil, entrarão em contato. A conclusão a que se chega é que, conforme L. Boff, “o cristianismo puro não existe, nunca existiu, nem pode existir”[14]. Segundo este teólogo, o próprio conceito de catolicidade autoriza um julgamento positivo do sincretismo, pois implica a inserção da Igreja em todas as sociedades[15]. Veremos nos futuros artigos que o cristianismo ao entrar em contato com as culturas, proporá a inculturação como um projeto missionário e em muitas dessas experiências a resposta tem sido o sincretismo como síntese desta interação cultural e transformação simbólica.

Author: Josuel Degaaxé dos Santos Boaventura PSDP - Fr Ndega
Theological review: Dr. Fr Luis Carlos Susin





[1] A capital da Bahia, o Estado brasileiro com o maior percentual de afrodescendentes.
[2] Cf. AZEVEDO, M. Op. Cit. p. a7.
[3] Cf. ZERO HORA. Op. Cit. p. 31.
[4] BARROS M. Op. cit., p. 27.
[5] SCHREITER, R. J. Op. cit., p. 71. “(...) a identidade não deve ser vista como um conceito aristotélico fechado, mas como uma variedade de paradoxos que interagem dinamicamente, sem jamais serem conciliados” (WILSON, Richard. Op. cit., p. 83).
[6] Cf. MIRANDA, M. de F. Op. cit. Acesso em 19 de nov. 2012.
[7] Cf. SCHREITER, R. J. Op. cit., p. 73. Inclusive ele chega a afirmar que “para compreendermos o sincretismo contemporâneo, portanto, mesmo uma breve olhada para o passado nos fará ver que a interação cultural e a transformação simbólica sempre ocorreram” (Ibid., p. 76). 
[8] Cf. RUSSELL, J. C. Op. cit., p. 73.
[9] Ibid., p. 73.
[10] Cf. SCHREITER, Robert J. Op. cit., p. 74
[11] Cf. Id. Ibid., p. 74. Na mesma página, o autor continua: “Uma crescente distância entre o altar e o povo, surge o ciclo do Natal (...), mais atenção foi dada a objetos (a cruz, relíquias), a Maria e aos santos; missas votivas particulares foram introduzidas; a reza de mãos entrelaçadas, a postura de um vassalo diante do senhor, substituiu a postura orans tradicional”.
[12] Cf. SCHREITER, Robert J. Op. cit., p. 74s.
[13] Cf. Ibid., p. 75.
[14] BOFF, L. Op. cit., p. 54.
[15] Cf. Ibid., p 54.

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