* Indication of biography about this matter for
personal deepening:
. BERKENBROCK, V. J. A experiência dos Orixás: um estudo
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Para a compreensão da dinâmica do sincretismo é necessário
ter presente que, na história das civilizações, “a interação cultural e a
transformação simbólica sempre ocorreram”[1]
caracterizando, entre outros, a formação de identidades religiosas. Não se pode
pensar que exista identidade cultural ou religiosa pura, pois, por mais
tradicional que seja, será sempre adaptação segundo o ambiente[2]
e resultado das experiências vividas e interagidas[3].
Assim sendo, quando falamos em sincretismo religioso, partimos de conceitos
integrados de cultura, segundo os quais,
as pessoas lutam para viver vidas integradas:
elas procuram incorporar novas informações em seu próprio universo cognitivo,
de forma a ter uma vida mais plena e humana. Os resultados de tais tentativas
raramente são organizados e completos, uma vez que as novas informações também
mudam o universo cognitivo. Novas informações nunca são recebidas no vácuo. Elas
são relacionadas com o que já é sabido[4].
Assim, para que surja nova identidade religiosa faz-se
necessário a interação cultural e a transformação simbólica, que estão na base
do sincretismo. Esse processo se dá de diversos modos. É importante considerar a
divisão que o autor R. J. Schreiter faz para compreendermos o processo que se
deu no Brasil e nos demais países da América Latina. Ele examina três tipos:
por hibridismo, por hierarquia e por resistência.
Formação
de identidade por hibridismo[5] - Refere-se à mistura de
culturas e línguas de povos diferentes. Este tipo de identidade é o que usou-se
chamar também de crioulização. São
seis os tipos de misturas que hoje são chamadas de hibridismo:
As três primeiras misturas
referem-se aos fenômenos sincréticos
propriamente ditos. O primeiro
trata-se do surgimento de uma nova realidade a partir da união entre cristianismo
e outra tradição. Neste caso esta tradição oferece a estrutura básica desta
nova realidade. No segundo é o cristianismo
que fornece a estrutura para o sistema sincrético, mas recebe uma nova
interpretação sendo remodelado substancialmente. Este processo é arbitrário por
parte desta outra tradição, isto é, independentemente de qualquer diálogo com o
cristianismo estabelecido. No terceiro
fenômeno são selecionados alguns elementos do cristianismo e incorporados a
outro sistema. Não surgirá uma nova realidade, mas esse outro sistema se enriquece
com estes novos elementos[6].
As outras três misturas
referem-se aos sistemas religiosos duais
(que chamaríamos também “dupla pertença”): No primeiro grupo, as pessoas têm consciência da distinção entre o
cristianismo e a outra tradição, mas mesmo assim praticam ambas lado a lado. No
segundo grupo, temos o cristianismo como
religião predominante, mas que inclui em seus rituais uma seleção de elementos
de uma segunda tradição, que é, assim mesmo, praticada separadamente do
cristianismo por outros fiéis. No terceiro
grupo, o nosso autor avalia como problemático, pois as pessoas que aderiram
ao cristianismo[7]
buscam manter também a fidelidade à sua identidade nacional que por sua vez
traz sua própria expressão religiosa[8].
Formação
de identidade por hierarquia - É quando a liderança eclesial ou a sua elite cultural tenta
mover em uma determinada direção a mistura cultural e religiosa ocorrida[9].
Isso pode acontecer por assimilação hierárquica no sentido de incorporar
práticas e ideias externas. Por exemplo:
A escolha do dia 25 de dezembro para comemorar a data do
nascimento de Cristo foi uma assimilação da Saturnalia
romana, assim como a introdução do pinheiro e árvores afins na comemoração do
Natal no norte da Europa. A assimilação é uma recontextualização de signos e
rituais que possam tornar a identificação com o cristianismo mais fácil para
membros de outras culturas, mesmo que isso ocasione uma mudança no cristianismo
também[10].
A formação de novas
identidades por hierarquia se dá também por meio de legislação, por
exemplo: reformas da Igreja oficial (sec. XVI), “a promoção de alguns santos ou
devoções especiais com a função de moldar novas identidades religiosas no
catolicismo”[11],
a produção de documentos oficiais do cristianismo católico com orientações e diretrizes
para a ação missionária e para tornar a inculturação mais possível ou para
adiá-la, etc.
Formação
de identidade por resistência - É sobre este último tipo que nos fixaremos agora, por se
tratar de um encontro cultural, no qual o poder desempenha um papel
determinante, tornando o encontro invasivo, desigual e violento. Em decorrência
disso, a reação é a resistência. “A resistência pode assumir a forma de total
recusa em participar ou, se a participação for forçada, de afastamento o mais
depressa possível”[12].
Nesse sentido, vamos analisar dois exemplos de diferentes povos da América
Latina que ilustra muito bem esta parte do nosso estudo:
O território dos povos Tainos[13]
da República Dominicana foi invadido pelos espanhóis no século XVI, mas os Tainos conseguiram expulsa-los e mantê-los
longe por quarenta anos. Todas as igrejas foram destruídas e no lugar foram edificadas
as kivas (locais sagrados de encontro).
Os espanhóis conseguiram reconquistar a área, mas os povos Tainos embora tendo aceitado o cristianismo, passaram a cultivar uma
participação dupla[14],
isto é, junto com os rituais cristãos, eles realizavam também algumas práticas
religiosas de forma clandestina e em segredo. Os ritos fúnebres, por exemplo,
nem sempre aconteciam a maneira cristã, e quando resolviam chamar o clero local
é porque outros ritos já tinham sido realizados segundo o que aprenderam dos
antepassados. Ao mesmo tempo que acontece a veneração dos santos e outras
festas, é vivenciada também a devoção a outros espíritos e entidades[15].
Os Q’eqchi’ são um povo de cultura Maia da Guatemala. O colonialismo lhes impôs
o cristianismo, alheio aos valores de sua cultura. Quando eles conseguiram
deixar de lado esta nova religião, fizeram uma reinterpretação de sua herança
maia, abandonando por completo o cristianismo. O interessante é que o exército
os deslocou para uma diferente área, longe das montanhas onde invocavam os
espíritos de determinada montanha (os tzuultaq’as).
Suas relações com estes espíritos foram cortadas, mas depois foram
recuperadas e recontextualizadas em espaços diferentes segundo as novas
condições do ressurgimento maia. Daí, então, os tzuultaq’as passaram a aparecer diante dos Q’eqchi’ vestidos como finqueros
(donos de plantações) alemães e, mais recentemente, apareceram em trajes
militares[16]. Os
únicos finqueros e militares que
podem dar ordens aos Q’eqchi’ são os tzuultaq’as.
Como podemos
perceber, o encontro entre cristianismo e as culturas foi também um encontro de
religiões, pois não há cultura sem religião. Como sabemos, nos seus primórdios
o processo evangelizador aconteceu sem levar em conta a sua exigência
fundamental, isto é, a inculturação – “adaptação” a mentalidade dos povos e
culturas[17].
Quando esta acontece de fato, incorpora elementos culturais que têm também a
sua expressão religiosa. Assim este processo está em estreita ligação com o
sincretismo, pois ambos possuem elementos de uma religião em outra. Talvez por
isso ainda exista tanta resistência com relação ao processo de inculturação,
tão necessário na evangelização. Mesmo que mais adiante teremos oportunidade de
estudar com maior profundidade o processo da inculturação, eu penso que é
conveniente apresentar uma breve comparação entre sincretismo e inculturação
para tornar mais clara a nossa compreensão a respeito do sincretismo.
No sincretismo há
uma assimilação dos elementos cristãos pelas religiões. Na inculturação, o
cristianismo é chamado a assumir as feições e os elementos da cultura local,
que já tem seu modo de ser e de viver plasmado por uma compreensão religiosa.
Assim, é possível dizer que inculturação é o verso do sincretismo[18]
ou, como dizia M. Marzal: “o sincretismo é a outra face da inculturação”[19].
Esta relação pode ser melhor compreendida a partir do que afirma o autor V.
Berkenbrock:
(...) o sincretismo é o projeto dos evangelizados e
inculturação é o projeto dos evangelizadores; a inculturação quer ser um
processo de abertura para o outro e o sincretismo é o resultado da resistência
no contato (inevitável) com o outro; a inculturação é um processo ativo, o
sincretismo é um processo reativo. A inculturação é um projeto da cultura
dominante, o sincretismo é um projeto de resistência da cultura dominada.[20]
A força profética
da mensagem cristã trouxe vida e libertação para todo ser humano. No contato
com muitas culturas, por um tempo, esta verdade foi ofuscada, tornando o
encontro dramático. Deste encontro, surgiram algumas formas de resistência,
novas descobertas e ressignificações, expressão da capacidade criativa de cada
povo visitado, possibilitando uma vivência toda particular do cristianismo. Em
nossos dias, já é possível admitir de uma forma positiva que em muitas das
experiências evangelizadoras, os elementos religiosos das culturas não
desapareceram no contato com o cristianismo, mas encontraram sua nova forma de
expressão dentro do cristianismo “inculturado”. O que chamamos hoje piedade
popular é a síntese resultante deste encontro, em suas múltiplas adaptações à
nova realidade. Portanto, podemos analisar criticamente o sincretismo, mas sem
deixar de reconhecer que a sua positividade nos ajuda a entender melhor o
processo da inculturação e assim podemos realiza-la de modo eficaz.
Author: Josuel dos
Santos Boaventura PSDP - Fr Ndega
Theological review: Dr. Fr
Luis Carlos Susin
[1]
SCHREITER, Robert J. Op. cit., p. 76.
[2] Cf. Ibid., p. 79.
[3] Além de falar da interação
entre Cristianismo e as Religiões provenientes da África para o Brasil, a
autora F. RHEHBEIN menciona festas populares dos reisados, congadas e maracatus
como uma “mescla do religioso com o profano”, extensão do sincretismo que
acontecia entre as religiões (cf. RHEHBEIN, F. C., Op. cit. p. 82).
[5] “O
Hibridismo resulta da remoção de uma fronteira entre duas entidades (culturais
ou religiosas) e da redefinição de uma nova fronteira. Isso também foi chamado
de ‘crioulização’, um híbrido de língua e cultura dos escravos africanos e do
Novo Mundo europeu” (SCHREITER, Robert J. Op.
cit., p. 83)
[6] Cf. Ibid., p. 84.
[7] Fazemos aqui referência a um
jeito simples e popular de viver o cristianismo católico que é muito presente
nas experiências do povo brasileiro. “Se esses fiéis têm ou não razão é outra história;
mas é inegável que se precisa partir deste dado: uma consciência por demais
difusa de que tal modo de compreender e praticar a religião é, seguramente,
católico” (SOARES, A. M. L. Op. cit.,
p. 2)
[9] Cf. Ibid., p. 87.
[11] Ibid., p. 88.
[12] Ibid., p.
82.
[13] Estes foram os primeiros
habitantes da ilha de St. Domingo e podemos encontrar mais detalhes sobre este
povo com o autor MEDINA, Walys Matos
em seu texto Sincretismo religioso
dominicano (op. cit). O autor R. J. SCHREITER, quando faz análise
sobre a resistência religiosa dos Tainos,
os define usando a palavra Pueblo. Provavelmente
seja esta a forma como os espanhóis os chamavam.
[14] Um outro exemplo neste
sentido podemos encontrar também em experiências afrodescendentes em que “os
líderes religiosos das religiões afro-americanas valorizam as práticas cristãs,
sobretudo católicas e recomendam aos fiéis a prática dos sacramentos, o
seguimento de Jesus Cristo e o culto filial a Nossa Senhora” (SILVA, A. A. da. Jesus Cristo, luz e libertador do povo
afro-americano in SILVA, A. A. da., Op.
cit, p. 49).
[15] Cf. SCHREITER,
Robert J. Op. cit., p. 82.
[16] Cf. Ibid., p. 82s.
[17] Cf. CONCÍLIO
ECUMÊNICO VATICANO II. Sacrossanctum
Concilium 37.
[18] Cf.
BERKENBROCK, V. J. Op. cit., p. 348.
[19]
MARZAL, Manuel. El rosto índio de Dios. Lima: Pontificia Universidad
Católica de Peru, 1991. Apud SCHREITER, Robert J. Op. cit., p. 93
[20] BERKENBROCK, V. J. Op. cit., p. 348.
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