THE BLACK PEOPLE CULTURES

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Sunday, June 4, 2017

O SINCRETISMO COMO FORMAÇÃO DE IDENTIDADE RELIGIOSA


* Indication of biography about this matter for personal deepening:
. BERKENBROCK, V. J. A experiência dos Orixás: um estudo sobre a experiência religiosa no candomblé. Petrópolis: Vozes, 1997.
. CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, 1962-1965, Cidade do Vaticano. Sacrossanctum Concilium. Disponível em http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-               ii_const_19631204_sacrosanctum-concilium_en.html.  Acesso em 24 de maio de 2017.
. IPOAA Magazine. The Religions of Latin American and African Slaves: Indigenous People of Africa and America., year 2010. Digital texto, disponível em http://www.ipoaa.com/religion_african_latin.htm. Acesso em 23 de maio de 2017.
. MARZAL, M. El rosto índio de Dios. Lima: Pontificia Universidad Católica de Peru, 1991.
. MEDINA, Walys Matos. Sincretismo religioso dominicano. Disponível em http://elrinconcitoculturalrd.blogspot.it/2016/07/sincretismo-religioso-dominicano.html   Acesso em 02 de junho de 2017.
. REHBEIN, F. C. Candomblé e salvação. São Paulo: Loyola, 1985.
. SCHREITER, R. J. A nova catolicidade: a teologia entre o global e o local. São Paulo: Loyola, 1998.
. SILVA, A. A da (Org.). Existe um pensar teológico negro? São Paulo: Paulinas, 1998.
. SOARES A. M. L. Impasses da teologia católica diante do sincretismo religioso afro-brasileiro. Disponivel em             http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/wp-  content/uploads/2009/05/impassesdateologiacatolica.pdf Acesso em 22 de maio de 2017.
. WILSON, R. Maya resurgence of Guatemala: Q’eqchi’ Experiences. Norman Oklahoma University Press,                 1995.


      Para a compreensão da dinâmica do sincretismo é necessário ter presente que, na história das civilizações, “a interação cultural e a transformação simbólica sempre ocorreram”[1] caracterizando, entre outros, a formação de identidades religiosas. Não se pode pensar que exista identidade cultural ou religiosa pura, pois, por mais tradicional que seja, será sempre adaptação segundo o ambiente[2] e resultado das experiências vividas e interagidas[3]. Assim sendo, quando falamos em sincretismo religioso, partimos de conceitos integrados de cultura, segundo os quais,

as pessoas lutam para viver vidas integradas: elas procuram incorporar novas informações em seu próprio universo cognitivo, de forma a ter uma vida mais plena e humana. Os resultados de tais tentativas raramente são organizados e completos, uma vez que as novas informações também mudam o universo cognitivo. Novas informações nunca são recebidas no vácuo. Elas são relacionadas com o que já é sabido[4].

          Assim, para que surja nova identidade religiosa faz-se necessário a interação cultural e a transformação simbólica, que estão na base do sincretismo. Esse processo se dá de diversos modos. É importante considerar a divisão que o autor R. J. Schreiter faz para compreendermos o processo que se deu no Brasil e nos demais países da América Latina. Ele examina três tipos: por hibridismo, por hierarquia e por resistência.

Formação de identidade por hibridismo[5] - Refere-se à mistura de culturas e línguas de povos diferentes. Este tipo de identidade é o que usou-se chamar também de crioulização. São seis os tipos de misturas que hoje são chamadas de hibridismo:  

        As três primeiras misturas referem-se aos fenômenos sincréticos propriamente ditos. O primeiro trata-se do surgimento de uma nova realidade a partir da união entre cristianismo e outra tradição. Neste caso esta tradição oferece a estrutura básica desta nova realidade. No segundo é o cristianismo que fornece a estrutura para o sistema sincrético, mas recebe uma nova interpretação sendo remodelado substancialmente. Este processo é arbitrário por parte desta outra tradição, isto é, independentemente de qualquer diálogo com o cristianismo estabelecido. No terceiro fenômeno são selecionados alguns elementos do cristianismo e incorporados a outro sistema. Não surgirá uma nova realidade, mas esse outro sistema se enriquece com estes novos elementos[6].  

       As outras três misturas referem-se aos sistemas religiosos duais (que chamaríamos também “dupla pertença”): No primeiro grupo, as pessoas têm consciência da distinção entre o cristianismo e a outra tradição, mas mesmo assim praticam ambas lado a lado. No segundo grupo, temos o cristianismo como religião predominante, mas que inclui em seus rituais uma seleção de elementos de uma segunda tradição, que é, assim mesmo, praticada separadamente do cristianismo por outros fiéis. No terceiro grupo, o nosso autor avalia como problemático, pois as pessoas que aderiram ao cristianismo[7] buscam manter também a fidelidade à sua identidade nacional que por sua vez traz sua própria expressão religiosa[8].

       Formação de identidade por hierarquia - É quando a liderança eclesial ou a sua elite cultural tenta mover em uma determinada direção a mistura cultural e religiosa ocorrida[9]. Isso pode acontecer por assimilação hierárquica no sentido de incorporar práticas e ideias externas. Por exemplo:

A escolha do dia 25 de dezembro para comemorar a data do nascimento de Cristo foi uma assimilação da Saturnalia romana, assim como a introdução do pinheiro e árvores afins na comemoração do Natal no norte da Europa. A assimilação é uma recontextualização de signos e rituais que possam tornar a identificação com o cristianismo mais fácil para membros de outras culturas, mesmo que isso ocasione uma mudança no cristianismo também[10].

        A formação de novas identidades por hierarquia se dá também por meio de legislação, por exemplo: reformas da Igreja oficial (sec. XVI), “a promoção de alguns santos ou devoções especiais com a função de moldar novas identidades religiosas no catolicismo”[11], a produção de documentos oficiais do cristianismo católico com orientações e diretrizes para a ação missionária e para tornar a inculturação mais possível ou para adiá-la, etc.

        Formação de identidade por resistência - É sobre este último tipo que nos fixaremos agora, por se tratar de um encontro cultural, no qual o poder desempenha um papel determinante, tornando o encontro invasivo, desigual e violento. Em decorrência disso, a reação é a resistência. “A resistência pode assumir a forma de total recusa em participar ou, se a participação for forçada, de afastamento o mais depressa possível”[12]. Nesse sentido, vamos analisar dois exemplos de diferentes povos da América Latina que ilustra muito bem esta parte do nosso estudo:

      O território dos povos Tainos[13] da República Dominicana foi invadido pelos espanhóis no século XVI, mas os Tainos conseguiram expulsa-los e mantê-los longe por quarenta anos. Todas as igrejas foram destruídas e no lugar foram edificadas as kivas (locais sagrados de encontro). Os espanhóis conseguiram reconquistar a área, mas os povos Tainos embora tendo aceitado o cristianismo, passaram a cultivar uma participação dupla[14], isto é, junto com os rituais cristãos, eles realizavam também algumas práticas religiosas de forma clandestina e em segredo. Os ritos fúnebres, por exemplo, nem sempre aconteciam a maneira cristã, e quando resolviam chamar o clero local é porque outros ritos já tinham sido realizados segundo o que aprenderam dos antepassados. Ao mesmo tempo que acontece a veneração dos santos e outras festas, é vivenciada também a devoção a outros espíritos e entidades[15].

Os Q’eqchi’ são um povo de cultura Maia da Guatemala. O colonialismo lhes impôs o cristianismo, alheio aos valores de sua cultura. Quando eles conseguiram deixar de lado esta nova religião, fizeram uma reinterpretação de sua herança maia, abandonando por completo o cristianismo. O interessante é que o exército os deslocou para uma diferente área, longe das montanhas onde invocavam os espíritos de determinada montanha (os tzuultaq’as). Suas relações com estes espíritos foram cortadas, mas depois foram recuperadas e recontextualizadas em espaços diferentes segundo as novas condições do ressurgimento maia. Daí, então, os tzuultaq’as passaram a aparecer diante dos Q’eqchi’ vestidos como finqueros (donos de plantações) alemães e, mais recentemente, apareceram em trajes militares[16]. Os únicos finqueros e militares que podem dar ordens aos Q’eqchi’ são os tzuultaq’as.

Como podemos perceber, o encontro entre cristianismo e as culturas foi também um encontro de religiões, pois não há cultura sem religião. Como sabemos, nos seus primórdios o processo evangelizador aconteceu sem levar em conta a sua exigência fundamental, isto é, a inculturação – “adaptação” a mentalidade dos povos e culturas[17]. Quando esta acontece de fato, incorpora elementos culturais que têm também a sua expressão religiosa. Assim este processo está em estreita ligação com o sincretismo, pois ambos possuem elementos de uma religião em outra. Talvez por isso ainda exista tanta resistência com relação ao processo de inculturação, tão necessário na evangelização. Mesmo que mais adiante teremos oportunidade de estudar com maior profundidade o processo da inculturação, eu penso que é conveniente apresentar uma breve comparação entre sincretismo e inculturação para tornar mais clara a nossa compreensão a respeito do sincretismo.

No sincretismo há uma assimilação dos elementos cristãos pelas religiões. Na inculturação, o cristianismo é chamado a assumir as feições e os elementos da cultura local, que já tem seu modo de ser e de viver plasmado por uma compreensão religiosa. Assim, é possível dizer que inculturação é o verso do sincretismo[18] ou, como dizia M. Marzal: “o sincretismo é a outra face da inculturação”[19]. Esta relação pode ser melhor compreendida a partir do que afirma o autor V. Berkenbrock:

(...) o sincretismo é o projeto dos evangelizados e inculturação é o projeto dos evangelizadores; a inculturação quer ser um processo de abertura para o outro e o sincretismo é o resultado da resistência no contato (inevitável) com o outro; a inculturação é um processo ativo, o sincretismo é um processo reativo. A inculturação é um projeto da cultura dominante, o sincretismo é um projeto de resistência da cultura dominada.[20]

A força profética da mensagem cristã trouxe vida e libertação para todo ser humano. No contato com muitas culturas, por um tempo, esta verdade foi ofuscada, tornando o encontro dramático. Deste encontro, surgiram algumas formas de resistência, novas descobertas e ressignificações, expressão da capacidade criativa de cada povo visitado, possibilitando uma vivência toda particular do cristianismo. Em nossos dias, já é possível admitir de uma forma positiva que em muitas das experiências evangelizadoras, os elementos religiosos das culturas não desapareceram no contato com o cristianismo, mas encontraram sua nova forma de expressão dentro do cristianismo “inculturado”. O que chamamos hoje piedade popular é a síntese resultante deste encontro, em suas múltiplas adaptações à nova realidade. Portanto, podemos analisar criticamente o sincretismo, mas sem deixar de reconhecer que a sua positividade nos ajuda a entender melhor o processo da inculturação e assim podemos realiza-la de modo eficaz.

 Author: Josuel dos Santos Boaventura PSDP - Fr Ndega
Theological review: Dr. Fr Luis Carlos Susin




[1] SCHREITER, Robert J. Op. cit., p. 76.
[2] Cf. Ibid., p. 79.
[3] Além de falar da interação entre Cristianismo e as Religiões provenientes da África para o Brasil, a autora F. RHEHBEIN menciona festas populares dos reisados, congadas e maracatus como uma “mescla do religioso com o profano”, extensão do sincretismo que acontecia entre as religiões (cf. RHEHBEIN, F. C., Op. cit. p. 82).
[4] SCHREITER, Robert J. Op. cit., p. 80
[5] “O Hibridismo resulta da remoção de uma fronteira entre duas entidades (culturais ou religiosas) e da redefinição de uma nova fronteira. Isso também foi chamado de ‘crioulização’, um híbrido de língua e cultura dos escravos africanos e do Novo Mundo europeu” (SCHREITER, Robert J. Op. cit., p. 83)
[6] Cf. Ibid., p. 84.
[7] Fazemos aqui referência a um jeito simples e popular de viver o cristianismo católico que é muito presente nas experiências do povo brasileiro. “Se esses fiéis têm ou não razão é outra história; mas é inegável que se precisa partir deste dado: uma consciência por demais difusa de que tal modo de compreender e praticar a religião é, seguramente, católico” (SOARES, A. M. L. Op. cit., p. 2)
[8] Cf. SCHREITER, Robert J. Op. cit., p. 84.
[9] Cf. Ibid., p. 87.
[10] Ibid., p. 88.
[11] Ibid., p. 88.
[12] Ibid., p. 82.
[13] Estes foram os primeiros habitantes da ilha de St. Domingo e podemos encontrar mais detalhes sobre este povo com o autor MEDINA, Walys Matos em seu texto Sincretismo religioso dominicano (op. cit). O autor R. J. SCHREITER, quando faz análise sobre a resistência religiosa dos Tainos, os define usando a palavra Pueblo. Provavelmente seja esta a forma como os espanhóis os chamavam.   
[14] Um outro exemplo neste sentido podemos encontrar também em experiências afrodescendentes em que “os líderes religiosos das religiões afro-americanas valorizam as práticas cristãs, sobretudo católicas e recomendam aos fiéis a prática dos sacramentos, o seguimento de Jesus Cristo e o culto filial a Nossa Senhora” (SILVA, A. A. da. Jesus Cristo, luz e libertador do povo afro-americano in SILVA, A. A. da., Op. cit, p. 49).
[15] Cf. SCHREITER, Robert J. Op. cit., p. 82.
[16] Cf. Ibid., p. 82s.
[17] Cf. CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Sacrossanctum Concilium 37.
[18] Cf. BERKENBROCK, V. J. Op. cit., p. 348.
[19] MARZAL, Manuel. El rosto índio de Dios. Lima: Pontificia Universidad Católica de Peru, 1991. Apud SCHREITER, Robert J. Op. cit., p. 93
[20] BERKENBROCK, V. J. Op. cit., p. 348.

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