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Deus se revela por amor e bondade,
fazendo-se próximo ao ser humano. É por uma divina intuição que ele faz a
descoberta desta presença e, nesse sentido, as religiões têm contribuído muito.
É nelas que o ser humano consegue expressar os seus profundos anseios, seus
maiores segredos, desejos, sonhos, aspirações e carências, fazendo a
experiência do Deus que se faz encontrar como uma presença que plenifica. É a
partir do significado (ou significados) da palavra religião que podemos
entender o papel desta instituição na relação entre o Deus que se revela e o
ser humano que acolhe e responde a esta revelação na medida de sua capacidade
de criatura[1]. “O escritor cristão
Lattanzio faz derivar o conceito religião da palavra religare (= restabelecimento da relação entre o ser humano e Deus);
Durkheim a define como “um sistema comum de crenças e de práticas relativas a
coisas sacras”[2]. Embora são duas posições
distintas, trazem um elemento comum no que se refere à finalidade da religião:
favorecer ao ser humano a experiência do sagrado, do mistério que envolve a sua
existência e que ao mesmo tempo o ultrapassa, conforme se expressa o Concílio
Vaticano II na declaração Nostra Aetate:
Os homens esperam, das diversas religiões, uma resposta aos
recônditos enigmas da condição humana, que ontem como hoje perturbam
profundamente o coração humano: Que é o homem? Qual o sentido e o fim da vida?
(...) Qual o caminho para chegar à verdadeira felicidade? Que é a morte, o
juízo e a retribuição depois da morte? Em que consiste, afinal, o mistério
último e inefável que envolve a nossa existência, do qual tiramos a nossa
origem e para o qual nos encaminhamos? (NA 1).
Uma das grandes verdades que as religiões
nos fazem refletir é que o ser humano - pela sua origem, estrutura e destino -
é “capaz de Deus”. Isso quer dizer que pela sua natureza, o ser humano há a
capacidade de acolher a revelação/proximidade divina[3]
e, que mesmo sendo finito, é considerado “o ser da transcendência”, pois toda a
sua existência está projetada para um horizonte muito além do que ele pode
abarcar[4].
Por isso que, de todas as experiências que o ser humano vive, nenhuma o envolve
tanto com este mistério como faz a experiência religiosa. Mas o fato de
considerarmos a experiência religiosa um “lugar” - e “lugar privilegiado” -
onde a realidade e a vontade de Deus se manifestam, não quer dizer que o
Mistério escondido que aí se revela, seja torna totalmente transparente[5].
Desde o início do mundo,
mulher e homem nasceram e foram amparados e promovidos pelo amor incondicional
do Deus da revelação. As religiões, no fundo, buscam configurar de forma
visível esta descoberta sendo uma “tomada de consciência da presença do divino no
mundo”[6];
presença esta, que não é passiva nem estática. Pelo contrário, envolve todo o
universo num processo de contínua renovação. “O sujeito religioso (...)
interpreta sua busca de Deus como suscitada por um prévio encontro com ele e no
qual Deus mesmo tomou a iniciativa”[7].
Em outras palavras, a experiência religiosa é provocada pelo próprio Deus que se
antecipa ao coração humano, suscitando o desejo por ele. Por isso a pessoa
verdadeiramente religiosa proclama sempre que é Deus quem fala, ama, solicita,
perdoa, sustenta e que ela apenas responde na fé, na oração, no louvor e na
adoração[8].
Neste sentido, a religião tem sido uma preciosa facilitadora, pois
(...) faz ressoar dentro do ser humano a voz de Deus que o
anima, o chama à vida e à comunhão, a uma plenitude que inicia na história e
que responde ao desejo de eternidade de todo ser humano. Transmite elementos
que possibilitam às pessoas experiências significativas. Responde-lhes as
perguntas mais profundas e sérias da vida, tais como a presença do mal, da
morte, da iniquidade, de um lado, e o desejo de felicidade, de eternidade de
outro[9].
Na religião, Deus é
experimentado como ‘transcendência’ que sai ao encontro do ser humano,
facilitando uma experiência totalizante. Por isso, toda religião se considera
revelada[10]. A razão disso é que cada
uma se apresenta como ‘tomada de consciência da presença de Deus’ no indivíduo,
na sociedade e no mundo. Uma religião real e autêntica proporcionará
experiência sempre numa dupla sensação: de transcendência, ante o mistério que
nela se faz presente; e de imanência, enquanto vemos que este fazer-se presente
se refere à existência concreta do ser humano[11].
Por isso, Torres Queiruga, afirma que
o ser humano não se sente nunca o criador dessa
experiência, mas seu receptor. As manifestações são diversas, contudo tem
sempre algo em comum: são vividas como dom que se recebe, como presente que se
acolhe. E, justamente, à medida que esse dom e esse presente se referem à
descoberta do divino que se manifesta, são revelação[12].
Os elementos que retratam a
manifestação divina, nas diferentes formas religiosas, obedecem a contextos
determinados[13]. Objetos, por exemplo,
que em algumas religiões se revestem de sacralidade, para outras, nada
significam. “A pluralidade de religiões pede uma pluralidade de mediações
reveladoras, cada uma legítima ao seu próprio modo, dependendo da gratuidade do
dom de Deus e da originalidade da resposta humana”[14].
Nas religiões mais antigas, as hierofanias[15]
acontecem de forma bem narrada e rica, através de ritos, mitos, animais,
plantas, os mais diferentes objetos, lugares, pessoas, símbolos, etc. Um
exemplo concreto neste sentido são as Religiões Tradicionais Africanas. Assim,
o processo revelador se dá
(...) desde o rito no qual se presencializa a ação
primordial divina, até o mito, que converte a experiência do Sagrado em
expressão fabuladora; desde a oração, onde o Divino se faz presença dialogante,
até a ação moral, onde é simples presença que manda, ampara ou julga; desde o
templo e os lugares sagrados, em que a presença se configura, até as mil
modalidades de hierofanias, em que aparece a infinita riqueza de seu rosto, ou
até mesmo o tabu, no qual se manifesta o aspecto negativo de seu poder.[16]
Deste modo, as religiões são
acolhida e resposta humana à real e reveladora presença divina[17]. Embora Deus, em sua manifestação, não se
limite nestes aspectos, citados acima, Ele se serve também deles para
comunicar-se com as pessoas, revelando-lhes seus desígnios de amor. Esses
desígnios vão sendo assimilados pelos fiéis das diversas religiões através dos
meios orientadores para a vida que lhes são oferecidos em vista de uma plena realização
pessoal e comunitária. Por isso, Torres Queiruga considera que “todas as religiões são verdadeiras. Não
porque tudo nelas (...) o seja, mas
na medida real em que acolhem a
Presença”[18]. Sabemos que em meio a
ações louváveis, as religiões apresentam muitas vezes aberrações teóricas e
perversões práticas, mas, acima de tudo,
(...) são totalidades complexas de resposta ao divino, ‘com
suas diferentes formas de experiência religiosa, seus próprios mitos e
símbolos, seus sistemas teológicos, suas liturgias e sua arte, suas éticas e
estilos de vida, suas escrituras e tradições - todos elementos que interagem e
se reforçam mutuamente. E estas totalidades diferentes constituem diversas
respostas humanas, no contexto das diferentes culturas ou formas de vida
humana, à mesma realidade divina, infinita e transcendente.[19]
Como já se sabe, a revelação
não apareceu como palavra feita, um oráculo da divindade escutado por um
vidente ou como se fosse um ditado divino, segundo a concepção tradicional, “mas
como experiência viva, como ‘dar-se conta’ a partir das sugestões e
necessidades do que estava em volta e apoiada no contato misterioso com o
sagrado”[20]. Também o autor Francisco Consentino concorda
que a revelação não se trata de comunicação de ideias ou verdades
sobrenaturais, mas de um “processo que envolve a vida divina que convida o ser
humano a uma relação com Deus no qual encontrar a sua identidade mais profunda”[21].
O sentido da revelação será mais
intensamente vivenciado se, por trás do elemento natural e da abundância de
dons recebidos, as pessoas conseguirem descobrir o Deus que os concede e os faz
acontecer ininterruptamente. A experiência religiosa, com todos os seus
elementos, não somente ajuda o ser humano a se ‘dar conta’ da presença de Deus,
mas também o faz viver conforme a provocação desta presença reveladora. Em
outras palavras, o ser humano religioso vai pouco a pouco sendo “modelado”
segundo o tipo de experiência religiosa que faz: “como não admirar o testemunho
espiritual e o esforço ascético dos grandes rishi
hinduístas, dos sufi islâmicos ou a devoção e a reverência ao único Deus
vivente”[22]. É admirável também o
testemunho de tantas pessoas que desde o início da vida cristã vem contribuindo
na construção de uma sociedade mais humana e mais fraterna a exemplo de seu mestre
Jesus Cristo, no qual Deus se revela a si mesmo de modo pleno e total.
Portanto, a revelação de Deus
não tem fronteiras, ou seja, Deus é livre para se revelar em outros espaços,
porque justamente o seu amor é sem fronteiras[23].
É a sua absoluta liberdade que o leva a escolher quando, onde, como e a quem
revelar-se. Cada experiência reveladora pode ser diferente de lugar a lugar, de
geração a geração, de religião a religião e até de pessoa a pessoa. Quando Deus
se revela, não segue nenhuma rubrica fixa e não pode nos obrigar a seguir
alguma[24].
Inclusive a nossa própria liberdade tem suas raízes no seu jeito amoroso de se
revelar, como expressa muito bem o Concilio em sua declaração Dignitatis Humanae: “A liberdade religiosa tem seu fundamento da
dignidade da pessoa humana (...) Esta doutrina sobre a liberdade tem suas raízes
na Revelação divina” (DH, 9). É vontade de Deus revelar-se nas e através das
religiões para que seus bilhões de filhos de filhas experimentem, na fé, seus
constantes auxílios. Por isso é que ninguém pode pretender fechar em suas
concepções limitadas o jeito ilimitado e criativo de Deus se revelar.
Author: Josuel dos Santos Boaventura PSDP - Fr
Ndega
Theological review: ThD Fr Luis Carlos Susin
[1] Segundo a perspectiva de Karl Rahner, “aquilo que o ser humano
percebe é sempre automaticamente ligado com as categorias e as estruturas da
sua capacidade cognoscitiva” (RAHNER, K. apud SANNA, I. Op. cit., p. 107).
[2] PANGRAZZI, Arnaldo (Org). Op. cit., p. 5.
[3] “Para Karl Rahner, se existe uma revelação de Deus no sentido
mencionado, então desde sempre a criatura humana possui na sua estrutura
antropológica, as condições para ser aberta e orientada a uma tal revelação e
para poder acolhê-la” (CONSENTINO, F. Op.
cit., p. 19).
[4] Cf. Ibid., p. 20. Continuando a sua reflexão, assim se expressa este autor
na página seguinte: “Se o ser humano é aberto e orientado à revelação de Deus e
esta última compreende entre outras coisas um cumprimento e uma plena
realização do ser humano, então mesmo de modo implícito afirmamos que Deus é
uma necessidade humana enquanto o ser humano há necessidade de Deus” (Ibid., p.
21).
[6] TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 21.
[7] MARTIN VELASCO, J. apud TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 22.
[8] Cf. TORRES QUEIRUGA, A. Repensar a revelação, p. 214.
[9] LIBÂNIO, J. B. Teologia da Revelação a partir da Modernidade, p. 268.
[10] Cf. TORRES QUEIRUGA, A. Repensar
a revelação, p. 173. O conceito de revelação que procuramos considerar aqui
é amplamente desenvolvido pela Teologia do Pluralismo Religioso. Trata-se de um
paradigma atual de reflexão que convida a teologia a romper com os esquemas
tradicionais, considerando a positividade das outras religiões. Esta é uma
tarefa que exige do teólogo abertura e coragem. O autor Faustino Teixeira ver
esta realidade com bastante otimismo ao considerar que estamos “vivendo uma
situação inédita, uma situação que suscita uma nova sensibilidade, levando-nos
a reconhecer a presença de Deus e da Sua graça nas diversas tradições
religiosas” (TEIXEIRA, F. Op. cit., p.
2). Nesta mesma linha, citamos também um trecho dos escritos do autor José María
Vigil, o qual diz que, “partindo do fundamento de um novo conceito de “revelação”
mais realista, menos ditada e mais humana, a TPR descobre a presença de Deus
atuando em todos os povos, um Deus que se é, é de todos, e de ninguém em
exclusivo. As religiões não são todas iguais – é obvio - nem são todas a mesma,
mas sim respondem, por caminhos próprios e particulares, a uma necessidade
humana básica de busca da dimensão de profundidade existencial”. (VIGIL, J. M. Op. cit., p. 86).
[11] “Cada religião há uma história própria e
um estatuto próprio, mas o que as une e está no centro da sua atenção è a
preocupação com a salvação do ser humano e o seu encontro com o transcendente,
Deus e o Divino” (PANGRAZZI, A. (Org). Op. cit., p5).
[12] TORRES QUEIRUGA, A. A
revelação de Deus na realização humana, p. 21.
[13] Tomando como referência o contexto de Índia, o autor Thomas Paniker
assim se expressa: “Em nosso contexto de pluralismo religioso nós realizamos
aquilo que é normativo em toda experiência reveladora: a experiência genuína do
transcendente, e o encontro de um Deus que acolhe a nossa busca transcendental
com um dar-se amoroso” (PANIKER, T. Op.
cit., p. 7).
[14] Ibid., p. 7.
[15] Segundo
a Wikipédia, A palavra Hierofania vem
do grego hieros (ἱερός) que quer dizer sagrado e “faneia” (φαίνειν) quer dizer
manifesto; portanto, pode ser definido como o ato de manifestação do sagrado. Quem
primeiro usou este termo foi Mircea Eliade em
seu livro Traité d'histoire des religions (1949) (cf.
Wikipédia, Hierofania). Este fenômeno
revelador é muito sintonizado com o contexto das pessoas envolvidas, como se
expressa muito bem o teólogo João Batista Libânio (de saudosa memória): “O
momento histórico e cultural de um povo é decisivo para as suas hierofanias.
Assim os povos nômades, que viviam mais da caça, eram obsessionados pela figura
do animal. Ou sacralizavam algum animal, em geral feroz, ou invocavam um “Senhor
dos animais” (...) Outros povos já sedentarizados, envolvidos com a
agricultura, cercam a natureza de mistérios sagrados com ritos de fecundidade
ou fertilidades com divinizações de fenômenos naturais ou de astros” (LIBÂNIO,
J. B. Deus e os..., p. 142s).
[16] Id. Repensar
a revelação, p. 25s.
[17] Cf. TORRES QUEIRUGA, A. Repensar o pluralismo: da inculturação à
inreligionação, p. 112.
[18] Ibid., p. 112
[19] Id. O diálogo das religiões, p.
16.
[23] “Em verdade estou me dando conta que Deus não faz discriminação de
pessoas, mas aceita quem o teme e pratica a justiça de qualquer povo a que
pertença” (Atti, 10, 34-35).
[24] Cf. PANIKER, T. Op. cit., p.7.
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