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Introdução
Como havíamos dito no texto
anterior, as religiões tradicionais africanas no contexto brasileiro, após
resgates, adaptações e ressignificações, tornaram-se religiões
afro-brasileiras. Dizíamos também que seu sistema de mediação apresenta uma
semelhança com o sistema africano de governo, isto é, existe o rei com seus
ministros intermediários e seus súditos. Assim, temos um Ser supremo com
inúmeros espíritos ancestrais e os seres humanos[1].
Nesta parte do nosso estudo queremos refletir brevemente sobre a dimensão
teológica destas religiões a partir de sua raiz africana. Para este estudo faremos
uso de alguns elementos da teologia africana. Existem dois modos de abordar a
questão teológica africana: um é o Teologia Cristã Africana e o segundo é o da
Teologia da Experiência Religiosa Africana[2].
Quando se fala de experiência religiosa na África se entende “as tradições, os
ritos religiosos, as cerimônias, os cantos, as orações, as danças, os muitos gestos
orientados à aproximação da comunidade ao Deus Criador, Pai, Mãe e Vida Eterna onde
já vivem desde sempre os Antepassados”[3]. Uma das Instituições que
têm contribuído muito para preservar todo este acervo teológico comum a todos
os povos africanos são as “Religiões Tradicionais Africanas” - RTA. Claro
que o nosso foco é a África negra[4],
por razões históricas e contextuais em sua diversidade e unidade ao mesmo tempo.
1 Questões em torno da terminologia “Religiões Tradicionais Africanas”
- RTA[5]
A África é unitária na sua concepção
monoteísta de Deus, mas diversificada nas experiências particulares de sua
presença. De um modo geral, em cada tribo e nas tradições são conservadas as
estruturas religiosas que foram estabelecidas ao longo do tempo e ainda se
pratica o culto a Deus por meio dos antepassados. Segundo o teólogo M. N.
Nkemnkia, “é por causa destes aspectos ainda hoje é possível estudar, compreender,
e comunicar a experiência religiosa africana”[6].
As
religiões de origem africana são chamadas tradicionais,
não porque sejam primitivas ou selvagens, “superadas” (anti-modernas), mas
por referirem-se ao contexto próprio dessas culturas. São religiões do contexto
africano. “Se há uma referência a uma herança do passado, esta não exclui uma
constante reestruturação devido aos desafios e circunstâncias históricas”[7].
Aqueles que criticam os
adeptos das religiões afro-brasileiras por realizarem no Brasil “algo”
ancestral e que na África nem existe mais, precisam se informar melhor, pois as
RTA estão muitas vivas na África como as religiões afro-brasileiras estão no
Brasil e há constantes intercâmbios entre esses dois grupos e seus
pesquisadores. A posição de dedicados autores africanos se impõe como parâmetro
para que possamos mudar o nosso modo de pensar sobre estas religiões. As RTA são
contemporâneas do ser humano africano moderno e constituem “um lugar privilegiado, um elemento real e central da cultura
africana”.[8] Ainda sobre isso é muito importante mencionar
um pronunciamento oficial do cristianismo católico:
“Por
religiões tradicionais se entende aquelas religiões que, ao contrário das religiões
mundiais que são difundidas em muitos países e culturas, permanecem no próprio
contexto sócio-cultural. A palavra “tradicional” não se refere a algo estático
ou imutável, mas faz referência a esta matriz localizada. Não existe
concordância sobre que expressões utilizar quando nos referimos a estas
religiões. Alguns nomes (por exemplo, paganismo, fetichismo) têm um significado
negativo e além disso não descrevem realmente o conteúdo de si mesmos. (...)
Enquanto na África se dá geralmente a estas religiões o nome de “Religiões
Tradicionais Africanas”, na Ásia são chamadas “Religiões Populares” (Folk
Religiões), na América “Religiões Indígenas e Religiões Afro-Americanas”
(Native Religion and Afro-American Religions) e in Oceania “Religiões idígenas”
(Indigenous Religions)” [9].
Este
texto é revelador de uma postura madura e respeitosa que repara o grande erro
dos primeiros colonizadores e missionários quando chegaram em terras africanas,
acreditando que aquela gente não tinha alma. Verdadeiramente foi um encontro
dramático pois esses estrangeiros, “quando não negavam a existência de qualquer
manifestação religiosa, minimizavam ou ridicularizavam”[10].
A referência que faziam às Sagradas Escrituras para falar da revelação divina
ignorava completamente a rica experiência reveladora que a gente africana recebeu
como herança dos seus antepassados através da tradição oral e os atuais eventos
significativos de suas comunidades. Suas revelações “aconteciam por meio de
sonhos, presságios, adivinhações, visões e possessões mediúnicas, e por isso os
europeus acreditavam na sua origem diabólica”[11].
A situação não foi diferente no Brasil, especialmente
a partir do século XVIII. Estas religiões foram consideradas “práticas de
magia”, “feitiçaria” e “grosseira superstição”. Durante o Estado Novo, em 1930,
intensificaram-se as perseguições contra elas, pois eram julgadas como sendo
contra a moral pública, sobretudo porque faziam sacrifícios de animais.
2 Princípios teológicos comuns da experiência religiosa africana e
afro-brasileira
Como toda religião africana
tradicional, as religiões afro-brasileiras expressam-se por símbolos, gestos,
mitos, ritos, danças e fórmulas – palavras e rezas. A tradição oral encontra
aqui espaço central, pois todos os ensinamentos são preservados e transmitidos
pela palavra: “palavra falada e palavra cantada. Palavra som. Som acrescido de
gesto, de olhar, de expressões corporais, de reforços de outros sons emitidos
pelo próprio corpo ou por outros meios como instrumentos musicais e outros não
convencionais”[12]. Através de cerimônias, são realizados sacrifícios e
oferendas aos Ancestrais, reconhecendo a sua importância como parte integrante
da comunidade e sua influência no viver.
A maior parte de
suas festas, como o nascimento, iniciação à vida adulta, ritos mortuários,
semeadura, colheitas, obter chuvas, etc., envolve práticas religiosas. Para os
fiéis destas religiões, o modo de viver é plasmado pela experiência religiosa,
segundo a qual se deve viver em harmonia com tudo o que existe, pois a
realidade é parte do ser humano e o ser humano é parte dela. Por isso, estas religiões
buscam manter o equilíbrio da vida, resgatando a dimensão unitária do mundo. As
ações de cuidado com a natureza e com tudo o que
existe é uma das propostas concretas como contribuição para manter o equilíbrio
e a harmonia do universo. Através do culto a pessoa exprime sua inserção
no mundo e sua dependência em relação a Deus[13].
a)
Monoteísmo
Diversos são os povos
africanos e diversificado também é o modo de expressar a fé em Deus, mas há um
consenso entre os estudiosos e entre os próprios africanos de que suas
religiões são monoteístas[14].
Em toda a África negra sempre se concebeu o sentido de um Deus único,
universal, criador de todas as coisas. Deus é reconhecido como causa primeira
de tudo o que existe. Esta concepção faz com que os povos africanos realizem
suas atividades impregnados do sentido religioso[15].
Quando se afirma “Deus existe”, não quer referir-se a uma afirmação filosófica,
mas se trata de um grito de ação de graças cheio de amor, demonstrando uma
relação filial profunda. Muitas tribos bantu,
por exemplo, utilizam a expressão Nzambi para
se dirigirem a Deus e, embora seja comum chamar a Deus de Pai – Tatá Nzambi - em alguns grupos, aparece
como Mãe - Mama Nzambi. E como são
capazes de unir a noção de Pai ou Mãe a Deus, quase sempre, ao referirem-se a
Ele, demonstram um carinho excepcional por considerá-lo cheio de ternura e
solicitude para com a criação[16].
Os africanos creem num Deus
único, incriado e criador, que está além de nós e tem a força e o poder por si
mesmo. É ele quem dá a existência e o crescimento a todos os seres. Para os yoruba, Ele é o Deus supremo Olorum[17]-
senhor ou dono do Orum - que mora no
céu, mas que assegura a vida, a terra e tudo o que nela existe. Ele não precisa
agir diretamente no mundo, pois entregou aos Orixás a responsabilidade e a força para fazê-lo[18].
Acreditam que, por ser infinitamente grande, Deus não se diminui ao ponto de intervir na vida das pessoas. Nenhuma
homenagem é dirigida a ele; não existe uma só casa de culto a ele consagrada e
nenhum culto regular é feito em sua homenagem. Há somente alguma menção do seu
nome em algumas jaculatórias e expressões. Ele é assim um deus distante e inacessível à manipulação humana e do
qual não se tem nenhuma imagem[19].
Na África se encontram muitíssimas
estatuetas-fetiches que retratam seres humanos, animais e espíritos, mas
nenhuma retrata o Ser Supremo. Pode somente ser objeto de discurso, e os povos
africanos lhe reservaram uma miríade de nomes para tentar assimilar o seu rosto
e determinar a sua natureza. O termo Zambe,
por exemplo, ocupa com leves variações (Zamba,
Nyame, Nzambi, Anzambe) uma área
geográfica que se estende da Costa do Marfim a Botswana. Os pigmeus chamam o Ser Supremo Epilipilia
(Senhor da caça), os bosquímanos Raggen (Pai), os hotentotes Tsuri-Goab (Criador do mundo visível). Outros nomes
difundidos são: Mungu-Midunga (Aquele que está no céu), Yankompon (o Grande Amigo) dos ashantes,
que consideram o céu o seu rosto resplendente, Aforun (Aquele que é por si mesmo) dos yoruba, e Ngai (a Chuva)
dos masai[20].
Interessante é que embora todos os povos africanos
veem o Ser Supremo como distante, consegue ao mesmo tempo senti-lo presente no
quotidiano de suas vidas e providente diante de suas necessidades. “Para
entender o aparente paradoxo do Deus distante e próximo, são úteis alguns provérbios,
outra produção espontânea antiquíssima destes povos: “Nyamuzinda não se esquece dos seus” (bashi); “não existe um vale assim sozinho que o Ser Supremo não
veja” (Madagascar); “o Sol não esquece nenhuma aldeia” (Congo)[21]. Segundo os yoruba
da Nigeria, embora
distante, Olorum não abandona a
criação nem o ser humano, enviando os Orixás,
que são sinal de sua presença, cuidado e proteção, conforme sabiamente relata
autor F. de l'Espinay: “O Orixá é
essencialmente orientado para o bem do ser humano: portanto ele ama. Como não
acreditar num Deus-Amor que cria e envia o Orixá?
Cresce assim a convicção de que Deus acompanha todos os passos de seus filhos
como mãe”[22].
b)
A compreensão africana de existência com um acento na experiência dos yoruba
Trata-se de uma compreensão que se baseia
na unidade fundamental de todas as coisas, pois o todo está dentro de cada
parte, assim como cada parte se encontra no todo. Algo muito profundo liga
todos os seres e os torna interdependentes. Estamos falando de todos os níveis
do cosmos: visíveis e invisíveis, sensíveis e insensíveis. Todo o mundo visível
é visto de modo espiritual, como um prolongamento do mundo invisível e com ele
forma um só e mesmo universo[23].
Nesta visão unitária da vida, alguns aspectos
particulares merecem atenção. Tudo o que existe transcorre em dois níveis: o Orum e o Aiye. Nada pode existir fora deles. Eles não correspondem a espaços
ou lugares, mas são formas de existência, que não se opõem, mas existem
paralelamente, sem, porém, se igualarem. O Orum
é a realidade invisível, ilimitada e espiritual, enquanto o Aiye é a realidade física, material,
visível, a terra.
Os seres do Aiye são chamados de Ara-Aiye, aos quais correspondem a
humanidade e os habitantes do mundo de um modo geral. Os seres do Orum são chamados Ara-Orum ou Irunmale[24],
correspondendo aos Orixás e os
mortos – Eguns[25].
Além desses, também “cada
indivíduo, cada árvore, cada animal, cada cidade, etc., possui um duplo
espiritual e abstrato no Orum (...)
Ou, ao contrário, tudo o que existe no Orum
tem sua ou suas representações materiais no Aiye”[26].
Esta realidade é que dá à existência uma dimensão tão unitária e totalizante.
É bom deixar bem claro que o fato de serem
níveis de existência paralelos, não significa que o Aiye exista fora do Orum.
O Orum, na verdade, abrange a
totalidade da existência, podendo estar em qualquer lugar, inclusive no Aiye. O autor V. J. Berkenbrock utiliza
a imagem ilustrativa de “um útero limitado num corpo ilimitado”[27]. Assim, o Orum e o Aiye estão
separados, mas não totalmente desligados. Estão em relacionamento muito
estreito e harmonioso. Da harmonia que existe entre eles, depende a harmonia da
existência como um todo. Mas não se trata de um relacionamento entre iguais. O Orum rege o Aiye, a existência material em geral e também a individual. Os Ara-Orum, especialmente os Orixás podem
adentrar no Aiye, mas o mesmo não
acontece da outra parte. Como os Orixás
são realidades espirituais, o seu aparecimento no mundo visível só é possível
através do corpo de seus filhos e filhas.[28]
c)
A força da existência
Como a parte está
no todo e o todo está na parte, a dinâmica da vida vem de uma energia, presente
em todas as coisas – a força vital (os yoruba
a chamam axé). Essa força parece ser
o elemento central para se alcançar aquilo que é o ideal da existência - a
harmonia de todas as coisas. Como a realidade é vista a partir desta força, tudo
aquilo que o ser humano faz pode conservar, aumentar, restabelecer ou diminuir
esta força vital. É esta
força vital que proporciona ou bloqueia a boa relação entre o mundo visível e o
invisível, entre ser humano e os seres espirituais. A fonte desta força é Ser
Supremo. A força vital que flui de Deus alcança a todos diretamente ou através
dos espíritos intermediários, dos antepassados, das lideranças[29].
Tudo o que existe possui energia vital e, ao mesmo tempo a
transmite. Sem esta força a existência ficaria paralisada e desprovida de toda
e qualquer possibilidade de realização[30].
Para que esta força vital seja
sempre renovada e desenvolvida são realizados ritos, sacrifícios e oferendas. A
falta destas celebrações pode diminui a energia vital e até impedir o seu fluir.
Portanto, celebra-se
ritos, sacrifícios e oferendas para reforçar a energia vital da comunidade e
contribuir para a harmonia do universo[31].
Trata-se de um sistema de troca, isto é, dar e receber: o ser humano faz estas
celebrações e recebe a renovação da força vital. O sacrifício é o
rito por excelência. Segundo alguns autores, o sacrifício de animais reporta a
um tempo em que a vítima era pessoa humana, inclusive, entre os yoruba[32].
d) A centralidade da comunidade
Como parte integrante
do universo, o ser humano é chamado a viver em harmonia com tudo o que existe.
Ele encontra um dos fundamentos do viver concebendo a terra como um ser vivo,
maternal e fecundo[33].
Mas esta harmonia só é possível se ele está integrado a uma família, a uma
comunidade. Esta experiência caracteriza sua identidade de forma bem original,
pois para os povos bantu, NZambi quando criou o ser humano, o fez
de forma comunitária. Num só ato, criou toda a comunidade familiar: o homem, a
mulher e as crianças. Portanto, além de ser a mais antiga instituição, a
família é também o conceito fundante para a compreensão da origem e do destino
do mundo e das pessoas. Também para os yoruba
não será diferente: Olorum criou, num
mesmo instante, o homem e a mulher. Os criou juntos, fazendo com que a
comunidade fosse o centro de suas vivências[34].
Os afro-americanos
conservam muito esta característica, “pois para eles o Deus da vida é um Deus
comunitário. Deus chama e salva não somente o indivíduo, mas todo o povo. Neste
caso, o papel fundamental continua sendo da família, como base para construção
e compreensão comunitária”[35]. A vida, portanto, só tem sentido se for em
comunidade, se o ser humano se sente multiplicado nos demais membros e ajudados
por eles. Aqui fazemos referência também ao sentido da família ampliada ou
alargada na África[36].
O sentido da comunidade-família está muito presente nas reflexões teológicas na
ótica do povo negro, conforme destaca A. A. da Silva:
A comunidade é,
portanto, o ponto de referência na vida e na morte: ‘Quem vive
comunitariamente, não morre jamais - Ao terminar os seus dias, permanece na
comunidade como ancestre’. Ao contrário, ‘quem vive de maneira exclusivista,
egoisticamente, morre e não se torna nada mais que um cadáver[37].
A comunidade é, então, o ponto de intercâmbio
entre os vivos e os mortos; é encontro do mundo visível com o invisível. Toda
pessoa tem necessidade de viver amparada, sentir o calor humano e a
solidariedade do grupo, sem os quais se sentiria perdida e sem horizontes para
caminhar e realizar-se. A força vital só é possível em comunidade; fora desta a
vida perde o sentido, isto é, o seu fluir. O que se busca em comunidade é
sempre o ideal da existência, como recorda V. J. Berkenbrock: “Somente nesta
condição de pertença à comunidade é que pode ser desencadeado o processo de
integração das forças do Orum
presentes em uma pessoa. ‘O estado de ser pessoa, de ser humano, só pode ser
atingido em comunidade’”[38].
Em outras palavras, o desenvolvimento das potencialidades humanas só é possível
mediante a experiência comunitária. Na Nigéria e no Benin, este envolvimento na
comunidade é fortemente proporcionado pelas confrarias. Assim expressa F.
REHBEIN:
Essas confrarias ou
comunidades, também conhecidas como ‘famílias-de-santo’, constituíam um sistema
de alianças, variando desde simples 'irmandades' até a mais complexa
organização hierárquica; aí se estabelece um parentesco comunitário-místico com
laços e semelhança das linhagens africanas. Os ‘pais’ e as ‘mães-de-santo’,
dirigentes espirituais dessas
comunidades, desempenham o papel de chefes de família; nesta, os ‘filhos’
pertencem a diferentes etnias, desde os africanos puros até os mais variados half-breeds.
Todos são parte de um todo, membros ‘consanguíneos’ pelos laços de iniciação,
ligados também aos ancestrais da comunidade[39].
Neste sentido, quando os africanos falam de
comunidade, não pensam somente os vivos, os que são visíveis, mas também os que
não se veem e que são percebidos como muito presentes na vida da comunidade.
Verdadeiramente, quando a pessoa morre, a sua energia vital não desaparece;
reforça a energia vital da comunidade. Assim se entende que a morte não é um fim
absoluto, mas apenas uma passagem para a forma Orum de existência. Se a pessoa esteve ligada a uma família, a uma
comunidade, ela se torna ancestre[40]. O culto a ela dirigido é a certeza de que a
vida continua[41]. Portanto,
a comunidade é composta de vivos e mortos. Esta expressão “mortos” é
inadequada, pois eles consideram vivos não somente os visíveis. O autor F. A.
Oborji diz que a família-comunidade “não se reduz somente aos que são ainda
vivos na carne. Os antepassados invisíveis e os membros que devem ainda nascer
são também parte”[42].
Por isso preferem a expressão visíveis e
invisíveis.
Tudo isso nos faz concluir com um trecho da experiência do
padre F. L’Espinay que aceitou ser iniciado em uma dessas comunidades de tradição
yoruba. Entre os importantes aspectos
de sua experiência ele destaca com vivacidade essa unidade e respeito aos
antepassados, os quais continuam participando da vida da comunidade e, inclusive
qualquer celebração não acontece sem que eles sejam muito bem lembrados. Assim
se expressa F. L’Espinay: “A roda sagrada não começa jamais sem que cada um e
cada uma faça uma saudação primeiro para a porta: é de fato o além, os
ancestrais, os mortos. Cada terreiro de candomblé, por menor que seja, é
sempre, ainda que simbolicamente dividido em duas partes: a dos vivos e a dos
mortos”[43],
isto é, a dos vivos visíveis e a dos vivos invisíveis. Esta comunhão nos faz
recordar uma Escritura que diz: “Vamos fazer o elogio dos homens famosos,
nossos antepassados através das gerações. Seus gestos de bondade não serão
esquecidos. Eles permanecem com seus descendentes. Seus corpos serão sepultados
na paz e seu nome dura através das gerações. Os povos proclamarão a sua
sabedoria, e a assembleia vai celebrar o seu louvor” (Eclo 44, 1.10-11.14-15).
Author: Josuel dos Santos Boaventura PSDP
Theological review: Dr. Fr
Luis Carlos Susin
[1] Sobre os yoruba, diz F. Rehbein: “Assim como há
um só rei na terra, há também um só Deus no universo. Como o rei se comunica
com seus súditos pela intervenção de mediadores, assim também o Deus Supremo,
Olorum, só pode entrar em contato com os seres humanos através de (...) Orixás” (REHBEIN, F. C. Op. cit., p. 30.)
[2] Cf. Nkemnkia, M. N. Op. cit. p.2.
[3] Ibid., p.2.
[4] O consenso a que se chega aqui é o que P. Kipoy chama
de “uma visão unitária”, a partir de autores já consagrados em pesquisas relacionadas
às religiões tradicionais africanas. Segundo o autor, “apesar da diversidade
das expressões religiosas próprias das diferentes tribos presentes na África
negra, um fato é certo: esta diversidade não altera a unidade da África Negra.
Isso é demonstrado pelas pesquisas dos eminentes estudiosos como por exemplo:
Cheikh Anta Diop, V. Mulago, J. Mbiti, E. Mveng, A.T. Sanon, Bimwenyi, L.-V.
Thomas, J. Jahn, G. Guthrie, Hampate Ba, D. Zahn, etc.” (KIPOY P. Op. cit., p.4).
[5] Em um encontro acontecido em
Abidjan (Costa do Marfim) no ano de 1961 sobre “Religiões africanas”, todos os
participantes consideraram que a terminologia mais adequada para definir a
experiência religiosa da África tradicional não é aquela de animismo mas aquela
de “Religiões Tradicionais Africanas” (cf. Ibid. Op. cit., p. 6).
[6] Nkemnkia, M. N. Op. cit. p. 4.
[7] Cf. BANLENE GUIGBILE, D. –ERNY, P., Vie, mort et ancestralité. p.
29. Apud KIPOY, P. Op. cit., p. 4.
[8] KIPOY, P. Op. cit., p. 3.
[9] PONTIFICIO CONSIGLIO PER IL DIALOGO
INTER-RELIGIOSO. Attenzione pastorale
alle Religioni tradizionali. Lettera del Presidente del Consiglio ai
Presidenti delle Conferenze Episcopali di Asia, America e Oceania”, in L’Osservatore
Romano del 21 gennaio 1994, n. 2.
[10] KIPOY, P. Op. cit., p. 5.
[11] MATTOS, R. A. de. Op.
cit., p. 84. A Constituição Federal salvaguarda o direito de culto a essas
religiões, mas o preconceito está tão arraigado na sociedade, que se tornou
comum a invasão de terreiros e a destruição de objetos sagrados por membros de
outros movimentos religiosos. O que estas religiões mais esperam da sociedade
brasileira é serem respeitadas enquanto alteridade e diferença.
[12] LODY, R. Op.
cit., p. 38.
[13] Cf. PRANDI, R. Op. cit., p. 17.
[14] Cf. PIRES, José Maria. O Deus da Vida nas comunidades
afro-americanas e caribenhas. In: Teologia afro-americana. II Consulta Ecumênica de Teologia e
Culturas Afro-Americana e Caribenha. Op.
cit., p. 23. Ele diz ainda, na mesma página: “Teólogos e
pastores prestariam bom serviço as comunidades cristãs se as ajudassem a
entender que não há politeísmo na cultura religiosa africana. Os negros vindos da
África não eram politeístas. Acreditavam em um Ser supremo, criador de tudo.
Que os povos de cultura nagô-yorubá o
chamem com o nome de Olorum (O
Inacessível) como os hebreus o denominaram Elohim,
que os bantos o chamem de Nzambi
(aquele que diz e faz) ou Kalunga (aquele que reúne) ou Pamba, ou Mandau, como os
gregos o denominaram Theos ou nós o
chamamos Deus e os indígenas Tupã, ele é sempre o supremo, o inatingível,
Senhor do céu e da terra”.
[15] Cf. ALTUNA, R. R. de A. Op. cit., p. 389.
[16] Cf. ALTUNA, R. R. de A. Op. cit., p. 398. No Brasil tem-se notícia de negros e negras
de origem bantu que formavam alguns
grupos religiosos em torno do Rio de Janeiro. Eram africanos e seus
descendentes advindos de Angola, Moçambique e Congo. Cultivavam a fé num Ser
superior, criador do mundo. Usavam diversos nomes para designar este ser: Nzambi ou Zâmbi (em Angola), Nzambiam-pungu
ou Zambi-ampungu (no Congo), Marimo, Reza, Molungo. Invocavam,
sobretudo, os espíritos dos falecidos e antepassados.
[17] Olorum é derivada de o-ni-orun que
significa “Aquele que é ou possui o Orum”. É também chamado Obá-Orum, ‘Rei do Orum’. (cf. SANTOS, J. E. dos. Op. cit. p. 56 e 72).
[18] Cf. Ibid.,
p. 59s.
[19] Cf. REHBEIN, F. C. Op. cit., p. 28.
[20] FABBRI, R. Op.
cit., p. 2.
[21] Ibid., p. 3 “As religiões
africanas souberam conciliar distância e proximidade, absoluta transcendência e
absoluta presença” (Ibid., p. 2).
[22] L’ESPINAY, F. Op. cit., p. 646.
[23] REHBEIN, F. C. Op. cit., p. 25.
[24] Esta expressão é usada pela autora
J. E. dos Santos.
[25] Estes são antepassados naturais dos
seres humanos. Ao terminaram os seus dias no Aiye, o que deles permanece, permanece ao nível de Orum (cf. BERKENBROCK, V. J. Op. cit., p. 24). A autora J. E. dos
Santos apresenta alguns aspectos que diferenciam estes Antepassados com relação
aos Orixás: “Para os Nagô, os Orixás não são Eguns. Distinguem-se duas práticas litúrgicas bem diferenciadas,
dois tipos de organizações e de instituições, dois sacerdócios: o culto dos Orixás e o culto dos Eguns (...) O culto dos Orixás atravessa as barreiras dos clãs e
das dinastias. O Orixá representa um
valor e uma força universal; o Egum, um
valor restrito a um grupo familiar ou a uma linhagem” (SANTOS, J. E. dos. Op. cit. p. 103s).
[26] SANTOS, J. E. dos. Op. cit. p. 54.
[27] BERKENBROCK, V. J. Op. cit., p. 180s.
[28] Cf. BERKENBROCK, V. J. Op. cit., p. 182s.
[29] FABBRI, R. Op. cit., p. 2.
[30] Cf. REHBEIN, F. C. Op. cit., p. 24.
[31] A oferta tem a
finalidade de regenerar a força vital individual e do grupo. Em geral é feita
aos antepassados e aos espíritos, a quem a força vital não é constante porque
não possuem vida própria como o Ser Supremo, porque doando-a eles a perdem,
suas forças diminuem e eles têm necessidade de regenera-la” (Ibid., p. 4)
[32] Na nota de pé de página, a autora F. C. Rehbein cita
o autor africano J. O. Awolalu, relatando como se dava o sacrifício expiatório
com a utilização de vítimas humanas: “Antigamente,
o sacrifício humano era considerado a mais alta forma de sacrifício, feito na
convicção de que é melhor sacrificar uma vida para o bem da comunidade do que
deixar que todos pereçam. O sacrifício humano era feito na época de crises e
desastres nacionais, com o intuito de apaziguar as divindades e torná-las
propícias, e de purificar a comunidade. Onde o sacrifício tinha o sentido
propiciatório e substitutivo, a vítima era levada através das cidades ou
aldeias, e os homens colocavam as mãos sobre ela, pedindo o perdão dos seus
pecados e as bênçãos dos deuses, visto que era
considerada como representante da comunidade perante os poderes superiores,
para apresentar seus pedidos. Geralmente, depois do sacrifício humano, os
sacerdotes encarregados do rito faziam penitência durante sete dias,
abstendo-se de alegrias e pedindo às divindades a aceitação do sacrifício e o
perdão dos seus pecados” (AWOLALU, J. O. Yoruba
sacrificial practice, p. 81-93. Apud REHBEIN, F. C. Op. cit., p. 55s).
[33] Cf. REHBEIN. F. C. Op.
cit., p. 40.
[34] Cf. SILVA, A. A. da. Jesus Cristo
luz e libertador do povo afro-americano. In:
SILVA, A. A. da. Existe um pensar teológico negro?, p.
50; cf. também REHBEIN, F. C. Op. cit.,
p. 43. “Entre os africanos o acento que se põe no que concerne ao conceito de
família não é sobre a legalidade, mas sobre o estar juntos, sobre a comunhão,
sobre o respeito às tradições e sobre a aceitação sem discussão daquilo que os
antepassados fizeram, sancionaram e estabeleceram como modo de comportamento
devido. Deste ponto de vista, podemos aqui reafirmar que o acento é sobre a
comunidade. A vida comunitária é a alma de toda a sociedade tradicional
africana” (OBORJI, F. A., Op. cit., p.
14).
[35] SILVA, M. R. da. Caminhos
da teologia afro-americana. In: Silva, A. A. da. (Org.). Op.
cit., 22s.
[36] REHBEIN. F. C. Op.
cit., p. 43: “A família, o grupo social melhor caracterizado, é a base da
convivência e da solidariedade africanas, abrangendo pai, a mãe, avós, tios,
primos, todos os consanguíneos e afins, e ainda os consanguíneos dos afins”.
[37] SILVA, A. A. da. Jesus Cristo, luz
e libertador do povo afro-americano. In: SILVA, A. A. da. Op. cit., p. 50.
[38] BERKENBROCK, V. J. A experiência dos Orixás, p. 293.
[39] REHBEIN. F. C. Op. cit., p. 72.
[40] “Os antepassados
(chamados mortos-vivos) são vivos de uma forma particular. A morte não há
alterado a sua personalidade, somente o seu modo de vida é mudado. Continuam a
fazer parte da comunidade dos vivos”. (FABBRI, R. Op. cit., p. 4)
[41] Cf. REHBEIN, F. C. Op. cit.,
ps. 47-53.
[42] OBORJI, F. A., Op. cit., p. 12.
[43] L’ESPINAY, F. Op. cit.,
p. 647.
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