THE BLACK PEOPLE CULTURES

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Saturday, July 15, 2017

RESSIGNIFICAÇÃO DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA DAS CULTURAS AFRICANAS NO BRASIL


* Indication of biography about this matter for personal deepening:
. BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. 3. ed. São Paulo: Livraria Pioneira, 1989.
. BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos orixás. Petrópolis: Vozes, 1995.
. BOAVENTURA, Josuel dos Santos. Negritude e experiência de Deus. Disponível em:
._______. Comunidades afro e experiência cristã. Disponível em: 
. BOTAS, Paulo. Carne do SagradoEdun Ara – Devaneios sobre a espiritualidade dos Orixás, Petrópolis: Vozes, 1996.
. CELAM. Texto conclusivo da V Conferência do Episcopado Latino-americano e caribenho (DAp.)São Paulo: Paulinas, 2008.
. CINTRA. Raimundo. Candomblé e umbanda. São Paulo: Paulinas, 1985.
. EQUIPE CENTRAL. Cultura Oprimidas e a evangelização na América Latina. Texto base do 8º Intereclesial de Cebs Santa Maria/, 1992.
. FREITAS, Décio. O escravismo brasileiro. 2. ed., Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.
. MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 3. ed., 1990.
. MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2011.
. SOUZA Jr., Vilson Caetano de. As raízes das religiões afro-brasileiras, Sem fronteiras, número especial, São Paulo, p. 5-20, jul. de 1994.


         Como havíamos dito, os negros e negras trazidos da África para o Brasil, ao serem separados de suas famílias, se integraram com os de outras tribos, formando novas famílias e resgatando os valores de suas culturas, especialmente aquilo que era razão de sua existência e trazia uma identidade comum: a concepção e a experiência religiosas. Dentro ou fora do cativeiro os inúmeros grupos de negros e negras foram pouco a pouco recompondo, em uma forma reduzida, a totalidade da vida africana[1]: estabelecendo relações com seus companheiros de origem e de raça, construindo espaços para a prática solidária, integrando as Irmandades católicas ou fundando as suas próprias, praticando o islamismo e suas crenças tradicionais[2]. Estes povos foram se encontrando e se identificando[3], deixando-se influenciar religiosa e culturalmente, principalmente a partir do final do século XVIII.

         Tão diferentes entre si, estes povos eram portadores de religiões, mitos e rituais muito diferentes uns dos outros[4]. Como todo ser humano, negros e negras não nasceram para viver em cativeiro. Muitos deles, quando não conseguiam fugir se suicidavam[5]. Há registro de muitos suicídios entre os negros e negras, tido como uma forma de resistência, uma forma de vingança contra o seu senhor, que ficava prejudicado. “O suicídio não tinha apenas motivo político, mas também religioso. Através da morte, havia a esperança de voltar à pátria dos pais”[6]. A África deixa de ser, portanto, somente um lugar geográfico para assumir o sentido espiritual e mítico.

Em meio a tanta dor e sofrimento, causados pelo processo escravagista, juntamente com a imposição de práticas religiosas (cristãs), alheias à sua realidade e aspirações, não faltou o esforço das Irmandades e Confrarias no resgate e ressignificação dos valores religiosos africanos. O vasto intercâmbio cultural e religioso entre esses povos fez com que as religiões africanas no Brasil se tornassem religiões afro-brasileiras, expressão de criatividade e resistência próprias do Povo negro. Todo esse movimento gera também um vasto sincretismo, que se espalhou pelo Brasil inteiro[7]. Processo semelhante se pode perceber em outros países da América Latina e do Caribe, para onde os negros e negras foram levados. Por isso, juntamente com as expressões religiosas dos demais países, estas religiões são também chamadas religiões afro-americanas e caribenhas.

Alguns de cultura mais avançada conseguiram reproduzir ainda no cativeiro, aspectos de sua religião; outros, de menor expressão, mas envolvidos por um sentimento ‘africanista’ profundo, deixaram-se influenciar pelos demais e em cada parte do Brasil, aonde foram conduzidos, deixaram a marca de sua experiência religiosa, ou seja, um modo diferente e todo particular de se relacionar com Deus. O autor V. C. de Souza Jr. cita um “mapa”, através do qual podemos identificar presença destas diferentes religiões no território brasileiro:

De acordo com este mapa, todo o norte do país, da Amazônia às fronteiras de Pernambuco, foi marcado pela influência indígena. Isso é evidente na pajelança, no Pará e na Amazônia, no encantamento, no Piauí, e no catimbó, das demais regiões (...) é sobretudo em São Luís do Maranhão que os escravos de origem daomeana deixaram traços de suas religiões, no tambor de mina, que para alguns está próximo ao vodu, do Daomé.[8]

No resto do Nordeste foi muito marcante a contribuição dos yorubá - também chamados nagô - povos de origem nigeriana[9], que conseguiram reconstruir no cativeiro toda a estrutura religiosa tradicional[10]. Os nagô brasileiros provindos, em sua maioria, dos yorubá do Daomé – atual Benin - se consideravam descendentes de Ifé, isto é, da cidade principal da religião dos Orixás, irmanados por um mesmo nome muito genérico. Quando chegaram no Brasil não foram levados nem para os engenhos de cana-de-açúcar nem para a mineração - que já estava em decadência - mas foram destinados aos trabalhos domésticos nos grandes e desenvolvidos centros urbanos e suburbanos da Bahia e de outras cidades do Nordeste, particularmente, Salvador e Recife. Estando nesta situação, tiveram maiores possibilidades de se agrupar, organizar os seus cultos e praticá-los[11], mesmo com perseguição policial.

Mais tarde, um contingente expressivo de nagô também foi deslocado para o Sul do país. O resultado de todo este deslocamento de povos que trouxeram a religião dos Orixás é a terminologia diversa para uma mesma religião, conforme o local onde se encontravam. Assim temos: o xangô, em Pernambuco, Alagoas e Sergipe e o candomblé, na Bahia. No extremo sul, particularmente Rio Grande do Sul, temos os batuques[12]. Esta última corrente, segundo R. Cintra, pode ter também forte influência bantu, derivando de cantos e danças ao som dos atabaques[13].

          Os bantu tiveram maior influência na região sudeste do país e, em particular, no Rio de Janeiro e São Paulo[14]. Ali introduziram a religião de nome cabula[15]. Há também informações que pode ter surgido com os bantu de Salvador, na Bahia[16]. Com o passar do tempo, estes grupos de cabula passaram a se chamar macumba[17]. Mesmo que os Bantu foram os primeiros a chegarem no Brasil, “paulatinamente, mas de forma segura, a tradição yorubá começa a influenciar os grupos de macumba. E, assim, os espíritos bantos foram aos poucos sendo substituídos pelos Orixás yorubá[18].

         Como, nesta região, o catolicismo popular crescia com expressividade, ao lado da pajelança e do espiritismo kardecista - que estava se introduzindo no Brasil - os contatos se fizeram, os sincretismos foram acontecendo e daí o que vinha de riqueza do candomblé, catolicismo popular, espiritismo, pajelança e base bantu, vai dar origem a uma nova religião. Depois de tantas adaptações e ressignificações, não convinha mais chamar de macumba, pois esta palavra tornou-se pejorativa. Decidiu-se usar as expressões quimbanda e umbanda para designar a maior síntese de religiosidades acontecida no Brasil. Estas palavras provêm da língua quimbundo, da Angola: umbanda significa ‘arte de curar’, enquanto quimbanda significa ‘médico’ ou ‘curandeiro’[19]. É bom lembrar que não são somente palavras diferentes, mas são duas correntes bem diferentes dentro dum mesmo movimento religioso[20]. Esta distinção nos é oferecida sinteticamente por R. Cintra, quando afirma que: “Só mais recentemente é que se fez a distinção entre umbanda, culto para homenagear os Orixás ou entidades e praticar despachos benéficos e quimbanda, culto de Exu[21].

          Nesta riqueza de aspectos, localização e organização, as religiões afro-brasileiras vão manifestando a sua diversidade. Mas há alguns pontos comuns que queremos considerar por serem de máxima importância nesse nosso estudo: a influência do catolicismo – sobretudo a presença do altar com estátuas de santos – é uma constante em praticamente todos os grupos, embora seja muito diversa e particular a importância dada; outros pontos em comum é o transe e a invocação de entidades espirituais, segundo a interpretação e valorização de cada grupo[22].

           Para os participantes desses grupos religiosos, o mais importante é o sentimento de pertença familiar, podendo experimentar aconchego e segurança. A pertença a estes grupos não se dá mais por parentesco carnal como era na África - pela linhagem ou descendência - mas espiritual, com um ligame tão estreito que lhes permite utilizar uma nomenclatura bem apropriada, conforme relata V. J. Berkenbrock: “(...) a nomenclatura para diversas funções ou cargos dentro das comunidades religiosas afro-brasileiras aponta para esta nova forma de parentesco: pai-de-santo, mãe-de-santo, filha-de-santo, irmão-de-santo, família-de-santo, etc”[23].

        A palavra “Santo” neste caso se refere à entidade espiritual que no Candomblé é chamado de Orixá. Trata-se, portanto, de uma reorganização religiosa no Brasil que não podia mais se apoiar nas ligações de parentescos carnais por causa do processo de escravidão, que dilacerou a família alargada ascendente, mas não pôde tirar do coração do negro e da negra o “enraizamento familiar e o sentido de Deus” (DAp, n. 56). Nesta família espiritual, o negro e a negra sentem-se parte de um todo, integrados ao mundo dos Antepassados, em que profano e sagrado vivem em harmonia.


Author: Josuel dos Santos Boaventura PSDP - Fr Ndega
Theological review: Dr. Fr Luis Carlos Susin




[1] Cf. BERKENBROCK, V. Op. cit., p. 117. Continua o autor, na mesma página: “Em círculos pequenos e fechados foi recomposta a pátria. A África e suas diferentes nações tornou-se exemplo inspiracional para estas comunidades, que passaram a ver na África e suas nações não apenas os lugares de origem ou um conceito geográfico. A África e suas nações passaram a ganhar um significado religioso e mítico. A África é a terra dos antepassados, da liberdade, a moradia dos Orixás; para a África, os negros sonham em voltar após a morte. A África torna-se a terra da promissão”.
[2] Cf. MATTOS, R. A. de. Op. cit., p. 154.
[3] “Uma das formas mais comuns de reconhecimento era por meio dos ‘sinais de nação’, como se chamavam na época as escarificações (espécie de cicatriz) feitas nos corpos, especialmente na face dos africanos. Essas marcas tinham características específicas, permitindo saber a qual ‘nação’ determinado africano pertencia” (Ibid., p. 116).
[4] Cf. CINTRA, R. Op. cit., p. 35.
[5] Cf. FREITAS, D. Op. cit., p. 44. A autora baiana, K. de Q. MATTOSO, comenta sobre a alternativa do suicídio, realizada pelo escravo, apresentando métodos como: “asfixia, engolindo a língua, enforcamento, estrangulamento, geofagia. No auge de sua cólera, uma loucura assassina o dominava e diante de tamanha confusão muitas vezes chegava a apanhar seus instrumentos de trabalho: pá, enxada, picareta, facão e matava o senhor ou feitor, que viviam a castigá-los ou maltratavam sua mãe ou seu amigo” (MATTOSO, K. de Q. Op. cit., p. 146).
[6] BERKENBROCK, V. Op. cit., p. 84.
[7] Cf. CINTRA, R. Op. cit., p. 36; cf. também BOTAS, P. Op. cit., p. 22.
[8] SOUZA Jr., V. C. de. Op. cit., p. 15.
[9] “A designação iorubá, que na origem aplicava-se a um grupo étnico localizado em torno de Oyó, capital da Nigéria antiga, tornou-se um termo coletivo, aplicado pelos franceses a diversas tribos nigerianas. Igualmente o termo nagô designa a língua falada por todos os povos iorubanos, fixados no Daomé. A língua dos daomeanos, por sua vez, foi denominada Gêge pela administração colonial francesa e passou a designar as tribos vindas do centro do Daomé durante as lutas tribais” (CINTRA, Raimundo. Op. cit ., p. 36s).
[10] Cf. SOUZA Jr., V. C. de. Op. cit., p. 5.
[11] CINTRA, R. Op. cit., p. 37.
[12] Cf. SOUZA Jr., V. C de. Op. cit., p. 15.
[13] Cf. CINTRA, R. Op. cit., p. 76.
[14] “(...) No Brasil os Bantos foram colocados principalmente no centro litorâneo, nos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo e Minas Gerais” (EQUIPE CENTRAL. Op. cit., p. 31.)
[15] “Em alguns escritos, por volta de 1900, estes grupos são chamados de “Cabula” e em torno dos anos 30 estes grupos são chamados de Macumba, nome sob o qual eles se tornam conhecidos em todo o Brasil” (BERKENBROCK, V. J. Op. cit., p. 149).
[16] A informação é do autor R. Cintra, em sua obra Candomblé e umbanda: “D. João Correa Nery, bispo de Vitória no Espírito Santo, no final do século passado, consagra uma de suas Pastorais à Cabula, umas das formas de culto banto, provinda, ao que parece, de Salvador, onde existe um bairro com este nome” (CINTRA, R. Op. cit., p. 76).
[17] Cf. BERKENBROCK, V. J. Op. cit., p. 148s.
[18] Ibid., p. 149.
[19] Cf. CINTRA, R. Op. cit., p. 77.
[20] Cf. Ibid., p. 151.
[21] Ibid., p. 77.
[22] Cf. Ibid., p. 168.
[23] BERKENBROCK, V. J.  Op. cit., p. 116.

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